quarta-feira, 23 de abril de 2014

Bea careca


Conheci Bea numa tarde de sol. O que mais me marcou, foi o brilho de seus cabelos cacheados. Era dourados e refletiam a luz do sol.
Pra dizer a verdade, morava quase em frente de casa, mas nunca a tinha visto. Só sei que caímos na mesma sala de aula naquele ano e que eu sentava logo atrás dela.
Numa tarde quando voltávamos da escola, sua mãe me convidou para entrar e tomar um chocolate.
A partir daí, ficamos amigos inseparáveis.
Muitas tardes eu passei em sua casa, lendo revistas. Eram estórias bonitas que líamos depois da escola ou aos sábados de tarde.
Essas revistas pelo que Bea me contou, eram trazidas pelo seu pai, para que eles se divertissem lendo juntos, então, Bea selecionava as melhores estórias e liamos juntos no sábado.
No verão fui duas vezes com sua família a praia, foi divertido demais. Trouxemos muitas conchas e muitas lembranças de brincadeiras na areia.
Éramos muito amigos até aquele inverno de 1986, quando tudo começou a mudar.
Não sei exatamente como tudo aconteceu, sei apenas que Bea ficou doente e não mais foi à escola. Bea não saia de casa pra nada e mamãe não me deixava mais ir a sua casa para ler as revistas. Não entendia o que estava acontecendo.
Depois de muito insistir, chorar e até ficar sem comer, num sábado mamãe fez um bolo de chocolate e fomos até a casa de Bea para vê-la.
Ela realmente não estava nada bem, seu cabelo dourado parecia ter crescido muito e tinha muito mais cachinhos, já o seu rostinho estava estranho, meio amassado. Como aquelas bolas de plástico que jogamos na praia. Quando fura, fica mole e vazia. Mamãe deu-me um beliscão quando falei isso pra Bea, mas Bea riu demais. A mãe dela gostou tanto de vê-la rir novamente, que deixou-nos rindo ali e foi conversar com mamãe na sala.
Eu e Bea ficamos conversando. Deixei Bea a par de tudo que acontecia na escola, inclusive a briga das gêmeas com a merendeira que as levou à diretoria. Rimos muito.
A tarde já se ia, quando mamãe me chamou para ir embora. Quando cheguei à sala pude ver a mãe de Bea chorando abraçada a mamãe. Quando perceberam minha presença se afastaram e a vi enxugando suas lágrimas.
A mãe de Bea deve ter gostado da minha visita, pois quando ia saindo ela abaixou-se beijou meu rosto e disse que eu poderia ir todas as tardes, visitar Bea. Fiquei tão feliz que corri de volta ao quarto para contar a Bea.
Desde aquele dia, quando saio da escola, passo na casa dela e fico até minha mãe ir me chamar.
Agora Bea sabia de tudo que acontecia na escola e até algumas lições eu trazia pra ela. É claro que era para ela me ajudar.
Estava quase tudo voltando ao normal. Bea já saia da cama e brincava comigo no carpete do quarto. Só não podíamos brincar de correr e pular.
Quando eu voltei da escola naquela sexta-feira, a casa de Bea estava toda fechada. Só o cachorrinho dela, o Bolinha, saiu pra me receber. Esperei por algum tempo, subi no portão e chamei novamente. Nada. Fiquei por ali mais algum tempo e desisti. Fui pra casa.
No dia seguinte, novamente não tinha ninguém na casa dela. Cheguei triste em casa, reclamando que Bea não queria me ver mais. Mamãe me chamou na sala, fez me sentar na poltrona e contou-me o que acontecia.
Bea ficara mais doente, de uma coisa ruim qualquer e estava no hospital. Ninguém podia vê-la, apenas seus pais. Mas o que realmente me preocupou, foi mamãe dizer que poderia acontecer de eu não mais poder vê-la.
Não sei quanto tempo passou, mas Bea voltou pra casa. Só fiquei sabendo por que uma daquelas gêmeas horríveis, perguntou-me se eu estava namorando a "Bea careca". Não sabia o porquê de ela chamar Bea assim, mas resolvi ir com mamãe na casa dela.
A mãe dela antes de deixar-me entrar, pediu-me para que eu não a aborrecesse, pois ela estava muito doente. Então entramos no quarto.
De início achei tudo normal, apesar da iluminação fraca do quarto. Bea me chamou e aproximei de sua cama. Então percebi o quanto ela realmente estava doente.
Bea tinha a pela muito branca e seus olhos estavam fundos e... Cadê os cachinhos dourados? Bea... Ela estava careca!
Não teve jeito comecei a rir e levei uma tremenda bronca de mamãe, mas eu não conseguia parar de rir. A mãe de Bea ficou paralisada, tão branca quanto Bea e começou a falar baixinho:
- Para... Para de rir – e foi aumentando a voz, até ouvimos outra risada vindo da cama.
Era Bea, rindo comigo. Imediatamente sua mãe parou de falar e colocou a mão na boca. Enquanto saia do quarto, mamãe deu-me um daqueles beliscões doídos, mas nem assim eu parei de rir. Puxou-me para fora do quarto, arrastando-me pela camisa.
Quando chegamos à sala, a mãe de Bea estava sentada no sofá com o rosto entre as mãos e chorava. Mamãe olhou-me como se eu fosse o culpado e disse:
- Tá vendo o que você fez menino, vamos embora! – Então a mãe de Bea nos chamou..
- Não vão embora, por favor! – Ela me puxou para próximo dela e abraçou-me. – Não estou chorando pelo que você disse, mas por ver Bea novamente sorrindo, depois de um mês desse sofrimento. Muito obrigada.
Agora as duas choravam e se abraçaram. Aproveitando disso, voltei para o quarto de Bea e começamos a rir juntos.
Não sei como souberam, pois a mãe de Bea pediu-me para não falar nada na escola, até que Bea voltasse a estudar, mas quando dias depois eu entrava pelo portão da escola, as gêmeas e mais duas “puxa-saco” me cercaram e começaram a gritar que eu era namorado da menina careca. Fui ficando nervoso com todos rindo de mim e parti pra cima das feiosas. Logo o inspetor nos separou e eu fui parar na diretoria.
Minha mãe foi chamada e, depois de assinar alguns papéis e puxar minha orelha, voltamos para casa. Tentei até explicar, mas nem papai me entendeu. Pensei em nunca mais ir para a escola, mas a mãe de Bea apareceu em casa.
- Eu não sei o que aconteceu, mas depois daquele dia que estiveram em casa, Bea reagiu e melhorou muito. O médico disse que irá continuar com o tratamento, mas que está surpreso com a reação de Bea. - Ela melhorara muito e poderia voltar a ser uma menina alegre como antigamente.
Ouvia a tudo atentamente e fiquei feliz de saber que Bea até voltaria à escola, mas ela estava com medo que todos rissem dela. Combinei de ir junto com Bea e apesar de prometer a mamãe que não bateria nas gêmeas se elas mexessem com Bea, estava disposto a fazê-lo de novo.
Quando no outro dia cheguei na casa de Bea, ela chorava e dizia não querer ir. Sua mãe estava quase desistindo quando eu tive uma ideia e pedi para ir ao banheiro. Não demorei muito, quando voltei a mãe de Bea berrou alto e Bea riu muito. Ligaram para minha casa e mamãe veio correndo, quando me viu quase teve um ataque. Chorou, brigou e não queria deixar-me ir à escola.
- Se Bea for eu também vou. – Ela muito brava, puxou-me para o banheiro novamente e pediu algo a mãe de Bea.

As duas mães nos acompanharam até a porta da escola e sorrindo ficaram olhando e acenando enquanto eu e Bea entravamos, agora, os dois carecas.

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