Acho que essa foi a primeira palavra que
ouvi, antes mesmo de sentir uma tapa no traseiro. É claro que chorei, pelo tapa
que levei e pelo susto que mamãe teve e que a levou chorar.
O tapa, jeito desnecessário para provocar
o choro e mostrar que o bebê está bem. Está bem... isso porque o tapa não é na
deles. O susto, bem...
Depois de recusar todo e qualquer
brinquedo, enfim ganhei minha primeira bicicleta. Não pensem que foi fácil
convencer meu pai a compra-la. No ano retrasado tinha certeza que dessa vez
convencera papai a comprar, até mamãe acreditou que eu ganharia e sei que ela
teve uma daquelas conversas em separado com ele, mas no dia anterior ao Natal
percebi que algo havia dado errado. Na árvore de Natal tinha presentes de toda
as formas, menos um grande como uma bicicleta. Por mais que mamãe disfarçasse,
percebi que estava brava com papai, afinal ele comprara um carrinho de formula
I e a controle remoto. Não gosto dessa estória de ver o brinquedo brincar
sozinho. Chato demais, dei para o meu primo Luiz.
No ano passado por mais que insisti, sabia
que não daria. Meu pai perdeu o emprego no meio do ano e ainda não conseguira
outro, sabia que as coisas estavam difíceis demais e me contentei com um jogo
de tabuleiro, muito simples por sinal.
Mas depois de tudo isso, enfim eu ganhei o
brinquedo dos meus sonhos, minha bicicleta.
Meu pai apesar de meio contrariado sorriu
muito e abraçou mamãe quando viu minha alegria, mas escutei cochichar com
ela...
- Será que um dia vai conseguir usar? –
Nem liguei.
Depois desse dia nunca mais a larguei, cai
muitos tombos, mais muitos tombos mesmo, ao ponto de papai quer me impedir de
usa-la, mas todo mundo sabe que as mães têm argumentos que mudam qualquer
opinião de pai, então me levou com a bicicleta para uma serralheria próxima de
casa e perguntou ao seu Euclides, o chefe de lá o que poderia fazer. Foi muito
engraçado de ver a cara dele e principalmente de ver ele coçar os cabelos que
não tinha mais.
Minha bicicleta ficou quase um mês com seu
Euclides, mas sempre passava por lá com papai para saber como as coisas estavam
acontecendo. Tentamos diversas alternativas, umas até engraçadas e outras
doloridas, até que num sábado o serralheiro mandou-nos chamar.
- Experimente, acho que agora
acertamos. – Ele não conseguia esconder
seu orgulho.
Subi na bicicleta com ajuda de papai,
olhando para aquelas rodinhas de apoio que brilhavam e me equilibrei. Todos se
afastaram um pouco, menos papai que ficou ali do meu lado.
-Vai filhote, você consegue. – Disse ele
soltando com muito cuidado suas mãos de mim.
Respirei fundo e tentei, No primeiro
esforço e nada. Ajeitei-me melhor e parti para a segunda tentativa e a
bicicleta meia que balançando se movimentou. Foi pouco, talvez um metro ou até
menos, mas todos gritaram e vibraram como se eu tivesse voado.
Essa não foi a primeira vez que vi papai
assim, nessa alegria e nem mesmo seu Euclides que agora também era meu cuidador
quando pegava minha bicicleta e andava pela rua. Numa tarde de domingo,
enquanto papai e seu Euclides ouviam o futebol pelo radinho e discutiam sobre o
jogo, eu peguei minha bicicleta para dar uma volta. Passei por eles
tranquilamente e comecei a andar, ia de uma ponta a outra da rua. Percebi que
poderia andar um pouco mais rápido e aumentei a velocidade, depois mais um
pouco e mais... Eu comecei a passar e voltar tão rápido pelos dois que largaram
o radinho de pilha e correram atrás de mim gritando.
- Pare, diminua. Você vai cair – Pareciam
dois malucos correndo pela rua e enfim me alcançaram.
Essa foi a primeira bronca que levei por
andar tão rápido e até fui ameaçado de perder a bicicleta se andasse daquela
forma. Mas não parei.
Cai, me esfolei, quebrei um braço, até levei
uma chinelada no mesmo lugar que o médico bateu quando nasci, mas não parei.
Depois de muito fazer e papai cansado de
brigar comigo por correr demais, seu Euclides apareceu em casa com um folheto
de uma competição que aconteceria no bairro para escolher meninos para
representar a cidade numa competição.
Papai, protetor como era achou um absurdo,
mas eu adorei e terminamos com o apoio providencial de mamãe, por convence-lo.
Chegou o tal dia e lá estava eu pronto pra
correr. Muito nervoso.
Logo de cara um dos fiscais chamou papai e
disse que eu não poderia correr, afinal eu era... pequeno demais. Como eu
estava na idade dos inscritos e com ajuda do seu Euclides conhecido do
organizador da corrida, papai conseguiu argumentar e depois de muita discussão me
deixaram participar.
Papai parecia mais nervoso que eu, mas
preocupado ajudou-me a alinhar com os demais meninos na largada.
- Filho é só uma corrida boba, se não
ganhar não ligue, apenas pedale. Estarei aqui se precisar ou cair.
- Tudo bem papai, eu sei disso. Vai dar
tudo certo.
Assim que papai saiu, os garotos que
estavam alinhados na largada, começaram a rir de mim e a falar coisas.
- Caramba que é isso aqui, vai correr?
- Ô piralho, seu Zé Pedal, sai do caminho
senão te atropelo.
Os demais começaram a rir e me chamar de
Zé Pedal. Confesso que segurei o choro e pensei em desistir, mas não tive
tempo, foi dada a largada.
Todos saíram em disparada e eu também, mas
era impossível acompanha-los. Enquanto sentia que corria muito, eles voavam.
Nem é preciso dizer que cheguei em último e longe dos demais.
Passei a linha de chegada e nem olhei para
papai continuei pedalando enquanto ouvia as gargalhadas e gritos: - Corre Zé
Pedal.
Depois de um tempo até adotei o apelido de
Zé Pedal, primeiro que eu me chamo José e pelo tanto que pedalava, fazia
sentido o apelido, até meus pais começaram a me chamar assim quando estava na
minha bicicleta, agora uma outra mais moderna e leve.
Não pensem vocês que desisti, apenas me
coloquei no meu lugar. Ainda adoro ouvir meus pais gritando da torcida, “corre
Zé Pedal”
*
Era a penúltima volta e eu estava em
quarto. Vinha conduzindo a diferença para os três primeiros no olhar, esperando
o momento exato de reagir. Ao passar pela linha de partida pela última vez,
pude ver meus pais e seu Euclides, encostados na grade que separava a torcida
da pista, apesar de não escutá-los tinha certeza que estavam gritando: “Corre
Zé Pedal” e agora... agora era minha vez.
Quando atravessei a faixa, puxei o ar para
os pulmões e comecei a acelerar minhas pedaladas. Alcancei o terceiro e o
deixei para trás. Olhei o segundo e não estava tão longe apertei mais ainda a
corrida e aproximei. Já havia passado quase meia pista, sabia que conseguiria
alcança-lo. Forcei mais, disputei a preferência da curva a esquerda e o deixei
para trás como o terceiro.
Levantei a cabeça e vi o primeiro, estava
bem a frente próximo. Na cabeça rapidamente fiz os cálculos e vi não daria para
pegá-lo. Pensei em manter o honroso segundo lugar, mas de repente na minha
cabeça como um raio passou tudo que fiz para estar ali. O olhar assustado de
meus pais quando cai a primeira vez, as marcas e cicatrizes causadas pelas
adaptações da bicicleta, seu Euclides coçando a cabeça, os meninos da primeira
largada...
Tem que dar, afinal eu chegará até ali.
Acelerei tudo que tinha e fui encostando muito lentamente no primeiro, que a
essa altura olhava rapidamente para me ver chegando. Ele também estava ali,
preparado para ganhar então percebi seu maior esforço para manter a diferença
de mim. Mas fui encostando... Até que chegou a última curva.
Pude ouvir os gritos ensandecidos das
torcidas, pais, amigos, treinadores, familiares, todos em pé e gritando. Então
fez um silêncio absurdo e eu só ouvia:
- Corre Zé pedal! – Não havia mais nenhum
som, apenas esse.
Vi a linha de chegada, olhei para minha
esquerda e estava lado a lado do primeiro colocado, não sei como fiz, mas o vi
como que se em câmara lenta, ir passando por mim centímetro por centímetro,
então olhei para a frente e passamos pela linha de chegada, cruzamos juntos.
Novamente voltou uma gritaria enorme, uma
confusão de línguas e terminei deixando minha bicicleta ir parando sozinho
ainda sem saber o que tinha acontecido, até que ouvi os altos falantes das
enormes caixas de som informarem.
- Medalha de ouro para o Brasil.
Eu me tornara o primeiro medalhista
brasileiro paraolímpico de velocidade em bicicleta adaptada, para pessoas sem
pernas.
- Corre Zé Pedal!
0 comentários:
Postar um comentário
Obrigado por comentar. Seu comentário e opiniões são muito importante para melhorar o blog.Se não quiser deixar... Fazer o que...