segunda-feira, 28 de maio de 2018

Zé Pedal

- Meu Deus!

Acho que essa foi a primeira palavra que ouvi, antes mesmo de sentir uma tapa no traseiro. É claro que chorei, pelo tapa que levei e pelo susto que mamãe teve e que a levou chorar.
O tapa, jeito desnecessário para provocar o choro e mostrar que o bebê está bem. Está bem... isso porque o tapa não é na deles. O susto, bem...
Depois de recusar todo e qualquer brinquedo, enfim ganhei minha primeira bicicleta. Não pensem que foi fácil convencer meu pai a compra-la. No ano retrasado tinha certeza que dessa vez convencera papai a comprar, até mamãe acreditou que eu ganharia e sei que ela teve uma daquelas conversas em separado com ele, mas no dia anterior ao Natal percebi que algo havia dado errado. Na árvore de Natal tinha presentes de toda as formas, menos um grande como uma bicicleta. Por mais que mamãe disfarçasse, percebi que estava brava com papai, afinal ele comprara um carrinho de formula I e a controle remoto. Não gosto dessa estória de ver o brinquedo brincar sozinho. Chato demais, dei para o meu primo Luiz.

No ano passado por mais que insisti, sabia que não daria. Meu pai perdeu o emprego no meio do ano e ainda não conseguira outro, sabia que as coisas estavam difíceis demais e me contentei com um jogo de tabuleiro, muito simples por sinal.
Mas depois de tudo isso, enfim eu ganhei o brinquedo dos meus sonhos, minha bicicleta.
Meu pai apesar de meio contrariado sorriu muito e abraçou mamãe quando viu minha alegria, mas escutei cochichar com ela...
- Será que um dia vai conseguir usar? – Nem liguei.
Depois desse dia nunca mais a larguei, cai muitos tombos, mais muitos tombos mesmo, ao ponto de papai quer me impedir de usa-la, mas todo mundo sabe que as mães têm argumentos que mudam qualquer opinião de pai, então me levou com a bicicleta para uma serralheria próxima de casa e perguntou ao seu Euclides, o chefe de lá o que poderia fazer. Foi muito engraçado de ver a cara dele e principalmente de ver ele coçar os cabelos que não tinha mais.
Minha bicicleta ficou quase um mês com seu Euclides, mas sempre passava por lá com papai para saber como as coisas estavam acontecendo. Tentamos diversas alternativas, umas até engraçadas e outras doloridas, até que num sábado o serralheiro mandou-nos chamar.
- Experimente, acho que agora acertamos.  – Ele não conseguia esconder seu orgulho.
Subi na bicicleta com ajuda de papai, olhando para aquelas rodinhas de apoio que brilhavam e me equilibrei. Todos se afastaram um pouco, menos papai que ficou ali do meu lado.
-Vai filhote, você consegue. – Disse ele soltando com muito cuidado suas mãos de mim.
Respirei fundo e tentei, No primeiro esforço e nada. Ajeitei-me melhor e parti para a segunda tentativa e a bicicleta meia que balançando se movimentou. Foi pouco, talvez um metro ou até menos, mas todos gritaram e vibraram como se eu tivesse voado.
Essa não foi a primeira vez que vi papai assim, nessa alegria e nem mesmo seu Euclides que agora também era meu cuidador quando pegava minha bicicleta e andava pela rua. Numa tarde de domingo, enquanto papai e seu Euclides ouviam o futebol pelo radinho e discutiam sobre o jogo, eu peguei minha bicicleta para dar uma volta. Passei por eles tranquilamente e comecei a andar, ia de uma ponta a outra da rua. Percebi que poderia andar um pouco mais rápido e aumentei a velocidade, depois mais um pouco e mais... Eu comecei a passar e voltar tão rápido pelos dois que largaram o radinho de pilha e correram atrás de mim gritando.
- Pare, diminua. Você vai cair – Pareciam dois malucos correndo pela rua e enfim me alcançaram.
Essa foi a primeira bronca que levei por andar tão rápido e até fui ameaçado de perder a bicicleta se andasse daquela forma. Mas não parei.
Cai, me esfolei, quebrei um braço, até levei uma chinelada no mesmo lugar que o médico bateu quando nasci, mas não parei.
Depois de muito fazer e papai cansado de brigar comigo por correr demais, seu Euclides apareceu em casa com um folheto de uma competição que aconteceria no bairro para escolher meninos para representar a cidade numa competição.
Papai, protetor como era achou um absurdo, mas eu adorei e terminamos com o apoio providencial de mamãe, por convence-lo.
Chegou o tal dia e lá estava eu pronto pra correr. Muito nervoso.
Logo de cara um dos fiscais chamou papai e disse que eu não poderia correr, afinal eu era... pequeno demais. Como eu estava na idade dos inscritos e com ajuda do seu Euclides conhecido do organizador da corrida, papai conseguiu argumentar e depois de muita discussão me deixaram participar.
Papai parecia mais nervoso que eu, mas preocupado ajudou-me a alinhar com os demais meninos na largada.
- Filho é só uma corrida boba, se não ganhar não ligue, apenas pedale. Estarei aqui se precisar ou cair.
- Tudo bem papai, eu sei disso. Vai dar tudo certo.
Assim que papai saiu, os garotos que estavam alinhados na largada, começaram a rir de mim e a falar coisas.
- Caramba que é isso aqui, vai correr?
- Ô piralho, seu Zé Pedal, sai do caminho senão te atropelo.
Os demais começaram a rir e me chamar de Zé Pedal. Confesso que segurei o choro e pensei em desistir, mas não tive tempo, foi dada a largada.
Todos saíram em disparada e eu também, mas era impossível acompanha-los. Enquanto sentia que corria muito, eles voavam. Nem é preciso dizer que cheguei em último e longe dos demais.
Passei a linha de chegada e nem olhei para papai continuei pedalando enquanto ouvia as gargalhadas e gritos: - Corre Zé Pedal.
Depois de um tempo até adotei o apelido de Zé Pedal, primeiro que eu me chamo José e pelo tanto que pedalava, fazia sentido o apelido, até meus pais começaram a me chamar assim quando estava na minha bicicleta, agora uma outra mais moderna e leve.
Não pensem vocês que desisti, apenas me coloquei no meu lugar. Ainda adoro ouvir meus pais gritando da torcida, “corre Zé Pedal”

*

Era a penúltima volta e eu estava em quarto. Vinha conduzindo a diferença para os três primeiros no olhar, esperando o momento exato de reagir. Ao passar pela linha de partida pela última vez, pude ver meus pais e seu Euclides, encostados na grade que separava a torcida da pista, apesar de não escutá-los tinha certeza que estavam gritando: “Corre Zé Pedal” e agora... agora era minha vez.
Quando atravessei a faixa, puxei o ar para os pulmões e comecei a acelerar minhas pedaladas. Alcancei o terceiro e o deixei para trás. Olhei o segundo e não estava tão longe apertei mais ainda a corrida e aproximei. Já havia passado quase meia pista, sabia que conseguiria alcança-lo. Forcei mais, disputei a preferência da curva a esquerda e o deixei para trás como o terceiro.
Levantei a cabeça e vi o primeiro, estava bem a frente próximo. Na cabeça rapidamente fiz os cálculos e vi não daria para pegá-lo. Pensei em manter o honroso segundo lugar, mas de repente na minha cabeça como um raio passou tudo que fiz para estar ali. O olhar assustado de meus pais quando cai a primeira vez, as marcas e cicatrizes causadas pelas adaptações da bicicleta, seu Euclides coçando a cabeça, os meninos da primeira largada...
Tem que dar, afinal eu chegará até ali. Acelerei tudo que tinha e fui encostando muito lentamente no primeiro, que a essa altura olhava rapidamente para me ver chegando. Ele também estava ali, preparado para ganhar então percebi seu maior esforço para manter a diferença de mim. Mas fui encostando... Até que chegou a última curva.
Pude ouvir os gritos ensandecidos das torcidas, pais, amigos, treinadores, familiares, todos em pé e gritando. Então fez um silêncio absurdo e eu só ouvia:

- Corre Zé pedal! – Não havia mais nenhum som, apenas esse.
Vi a linha de chegada, olhei para minha esquerda e estava lado a lado do primeiro colocado, não sei como fiz, mas o vi como que se em câmara lenta, ir passando por mim centímetro por centímetro, então olhei para a frente e passamos pela linha de chegada, cruzamos juntos.
Novamente voltou uma gritaria enorme, uma confusão de línguas e terminei deixando minha bicicleta ir parando sozinho ainda sem saber o que tinha acontecido, até que ouvi os altos falantes das enormes caixas de som informarem.
- Medalha de ouro para o Brasil.
Eu me tornara o primeiro medalhista brasileiro paraolímpico de velocidade em bicicleta adaptada, para pessoas sem pernas.


- Corre Zé Pedal!


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