quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Tatu e o Rock

Tatu era um cara esquisito, mas era meu amigo.

Cabelo comprido, barba quase inexistente, botinas com canos longos, tipo coturno militar e um modo estranho de andar. Assim era o Tatu, meu colega de trabalho.
O conheci no meu primeiro emprego registrado. Aliás, aquela metalúrgica no ABC paulista parecia ter de tudo, uma figura mais maluca que outra. Um colega metido a garanhão que pegava todas as mulheres, e era mesmo, tenho outras histórias para contar dele, um fotografo que trabalhava em plaina, um pintor meio aloprado, mas que jogava um bolão. Tinha também jovem rapaz que veio do SENAI, o Sujeirinha. Ele era auxiliar de um torneiro mecânico que parecia saído de um filme de terror e tinha muitos outros mais.
A empresa que tinha essas figuras entre seus empregados, produzia máquinas industriais de lavar, secar e passar roupas, tudo de grande porte para hotéis, hospitais e similares.
Tatu trabalhava no setor de pintura e as vezes na calandra, um tipo de secadora.
Foi dele que comprei minha primeira camiseta de rock, da banda Kiss, na época radical demais. Ele as vezes pareci na empresa com alguma para vender, todas pintadas por ele mesmo. Podia ser de qualidade duvidosa, mas na época para mim era ter algo pra lá de radical. Tanto que quando cheguei em casa com minha camiseta, minha mãe quase teve um ataque. Acho a coisa mais horrível do mundo e me mandou devolver. Mas eu poderia devolver uma camiseta do Kiss? Daquela banda que apesar de ouvir raramente uma música, pois era muito difícil juntar dinheiro para comprar um disco, me fascinava pelo que passava em seus clips, esperado ansiosamente e assistido semanalmente pela antiga TV cultura? Fiquei com ela, mesmo que, usando pouquíssimas vezes.
Aprendi muito sobre rock com esse estranho amigo. Conheci bandas que nem imaginava existir, como Led Zeppelin e Pink Floyd e fiquei encantado com esse descriminado ritmo.
Um dia Tatu apareceu com uma novidade, queria vender um LP do Rolling Stones. Estava mais estranho que o normal, mas logo entendi o porquê.
Tatu estava passando por um momento difícil, que nem imagino o que realmente era, mas para chegar ao ponto de vender um LP dos Rolling Stones, devia ser sério.
Os Rolling Stones eram para nós na época, o antídoto aos The Beatles. Enquanto a banda do quarteto de Liverpool, tocavam baladas e um rock ameno, os Rolling Stones eram rebeldia pura. É claro que essa era uma visão de um garoto que mal sabia o que era Rock' Roll.
Ele trazia o LP colado ao corpo, primeiro para que a chefia não o visse oferendo pelas seções, isso poderia lhe custar uma advertência, e também parecia que relutava em se separar de tal disco. Chegou até ao almoxarifado, onde eu trabalhava, como se tivesse vendendo algo ilegal. Olhava de um lado ao outro, como se pudesse estar sendo seguido e falava baixo.
O valor que me pediu era astronômico, eu ganhava muito pouco, mas meus olhos brilharam quando segurei o disco e a cabeça começou a fazer contas. Não tinha jeito, nunca conseguiria o valor e acreditei que ninguém ali o compraria, o que me daria um tempo para juntar o dinheiro. Acertei com ele que juntaria o dinheiro para ficar com o disco.
Naquela noite mal dormi e quando consegui, sonhei ver a capa do LP na minha estante como um troféu e o som de Satisfation preenchendo todo o espaço da minha sala. Ainda bem que mamãe não participou do sonho ou o disco sairia voando pela janela. Comecei a juntar moedas.
Dias depois, lá veio o Tatu com outra camiseta para vender, nem quis ver e o interrompi no meio da conversa para perguntar sobre o disco. Um choque... ele havia vendido e pela metade do preço. Exatamente o que eu já havia juntado.
Acho que a partir desse dia deixei de ser seu amigo.
Alguns dias depois ele foi dispensado da empresa e nunca mais vi o Tatu. Nunca, até 25 anos depois.
Numa das minhas muitas idas a Santo André ver o Ramalhão jogar, quando saia da estação ferroviária, vi um homem carregando um tipo de estojo grande, pareceu-me ser de artesanatos. O que me chamou a atenção para sua figura, foi a forma que olhava de um lado ao outro. Imediatamente minha memória, que já não era grande coisa na época, trouxe a imagem do Tatu me oferecendo o disco dos Rolling Stones. Nem imagino o porquê da ligação das imagens, mas me aproximei daquele homem e o chamei por Tatu.
Esperava que virasse de imediato para mim, mas nem se importou. Quando toquei seu ombro, virou-se rapidamente esquivando-se de mim. Olhou-me assustado e tentou afastar-se. Chamei-o novamente pelo apelido e ignorou-me, tentando sair dali.
O segui por alguns metros e quando pedi que parasse e falei quem eu era, ele realmente parou e virou-se para mim.
Ele estava bem envelhecido, barbudo e desleixado, parecia um andarilho ou mesmo um morador de rua. Senti muita pena naquele momento e foi inevitável comparar aquela imagem com a daquele jovem e dinâmico roqueiro do final dos anos 70.
Aproximei e lhe estiquei a mão. Ele se encolheu e disse que não me conhecia perguntando o que eu queria. Vi que realmente não me reconheceu e então disse que queria comprar algo.
Imediatamente, ainda olhando para os lados separou seu mostruário que agarrava junto ao peito, como fez exatamente com o LP do Rolling Stones há tantos anos atrás e mostrou-me seus trabalhos. Eram botoons, que segundo ele, fizera com as próprias mãos. Tinha vários e o que me ofereceu de imediato foi uma pequena guitarra vermelha e azul, que trazia no seu braço escrito Rolling Stones. Olhei para ele espantado e vi que sua fisionomia não mudará, fora apenas uma coincidência. Fiquei com o botoon, paguei, agradeci e lhe estendi minha mão. Ele olhou-me desconfiado e a apertou. Então me despedi dizendo: "Adeus Tatu".
Afastei-me e fui embora parando por diversas vezes e olhando para trás. Ele não se mexeu um milímetro. Ficou ali parado olhando até sumir de sua vista, parado como uma estátua.
Nunca mais soube do Tatu.
Apenas registro essa história para reafirmar a minha memória, um tempo que vivi uma relação com o rock e tive um grande amigo roqueiro.

Salve Tatu!

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