sexta-feira, 25 de abril de 2025

7ª Sexta-feira - Este ônibus vai para onde?



   Esse ônibus vai para onde?


Mudei de bairro há dois anos. A fama sombria do Igarapés — com seus

“casos não explicados” cochichados entre vizinhos — foi o suficiente para me

convencer a ir embora. Mas...

Na empresa, virei piada. Tudo por ter contado duas situações que presenciei por

lá. A primeira foi no campo de futebol: um anjo de asas negras, parado, olhando

para o chão como se conversasse com alguém caído. Quando percebeu minha

presença... simplesmente sumiu. Eu sei — parece absurdo. Às vezes até duvido

de mim mesmo. Mas eu vi.

A segunda aconteceu na academia pública ao lado do campo. Estava vazia, mas

os aparelhos se moviam, como se invisíveis atletas estivessem malhando ali.

Na época, eu trabalhava como cobrador de ônibus e fazia apenas as duas últimas

viagens. Um colega me deixava na Dutra e, de lá, eu caminhava sozinho, pela

madrugada, até em casa. Como dizia uma tia minha: “Quer ver coisa estranha?

Caminha de madrugada pelo Igarapés.” E eu caminhava.

Agora moro do outro lado da cidade. Mas vi o anjo novamente. Duas vezes. Sem

asas.

Estava encostado em um poste, do outro lado da rua, quando cheguei do

trabalho. Braços cruzados. Olhar fixo em mim. Às vezes, murmurava, como se

houvesse alguém invisível ao seu lado.

Comentei com um amigo do antigo bairro. Ele confirmou: “Já viram ele no campo.

Dizem que cuida da alma de um rapaz assassinado lá.”

Não quis saber mais. Nem detalhes. Preferi trocar de turno e passei a trabalhar

nas primeiras viagens do dia. Achei que seria mais tranquilo.

E estava sendo.

Uma semana depois, já mais leve e até rindo com os passageiros, voltávamos

para o Igarapés quando um homem de capote e boné fez sinal. O motorista

parou. Ele subiu lentamente, os passos ressoando vazios no corredor. Veio em

direção à catraca.

Conversava com uma senhora quando ouvi a voz. Grave. Arrastada.

— Esse ônibus vai para onde?

Virei o rosto.

Gelei.

As palavras se esconderam no fundo da garganta. O ar me faltou.

Era ele. O anjo de asas negras. Agora, sem elas.

Ficou ali, sério, me encarando.

— Ele vai para o Igarapés? — repetiu.

O mundo emudeceu. Não consegui responder. O peito apertou. A visão

escureceu. Fechei os olhos e senti alguém me sacudindo.

— Filho, você está bem?

Abri os olhos.

Era a senhora, abanando-me com uma velha pasta de documentos.

Olhei em volta, desnorteado. O homem havia sumido.

Respirei fundo, tentando entender.

— Foi só um mal súbito, murmurei. Estou bem.

Ela sorriu, aliviada.

— Pensei que tivesse visto um fantasma. Ficou branco feito papel e parou de

respirar.

O motorista parou o ônibus, veio até mim. Confirmei que estava bem. Ele

assentiu, voltou ao volante e seguiu viagem.

A boa senhora apertou minha mão, pediu que respirasse fundo. Obedeci.

Os outros passageiros me olhavam em silêncio. Fiz sinal de que estava tudo certo,

levantando a mão.

E então vi.

Lá no último banco.

Ele também levantava a mão, olhando direto pra mim.

Era ele.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

4ª Sexta-feira - Uivos familiar



Uivos na família

 

Quando subia a ladeira que levava à minha rua naquela tarde, mal sabia eu que iniciava um encontro antigo, como se o destino já houvesse traçado aquele caminho sombrio.

Todos os dias, ao descer do ônibus na entrada do bairro, encontrava o seu Zé. Subíamos o morro juntos, sempre envoltos por uma névoa de rotina. Naquela tarde, contudo, algo pesava no ar. O seu Zé parecia preocupado, mas sua boca se fechava em silêncios pesados.

Eu não sabia muito sobre ele, apenas o nome que o eco do bairro lhe dava: “seu Zé”. Caminhávamos lado a lado, trocando palavras ocas, pequenas moedas de conversas sem valor. Mas naquela tarde, decidi parar no meio da subida para entrar no bar do Chiquinho. Seu Zé seguiu sozinho pela rua tortuosa, a figura se desmanchando na luz fraca do entardecer.

 

— Ô seu Dimiro, veio tomar uma com a gente? — A voz rouca de Dólar, um jovem do bairro, quebrou o silêncio.

— Que nada, só vim pegar uma encomenda da patroa com o Chiquinho.

 

Os rostos ao meu redor se fecharam novamente, as conversas se afogando em murmúrios. Falavam do sumiço de mais duas galinhas do seu Barba. Quando perguntei “como assim, mais duas?”, os relatos escorreram, viscosos, pela sala. Histórias de desaparecimentos, da cabra de seu Xico, do gato do seu Leôncio, do viveiro de codornas do Jacinto, devastado. Uma criatura faminta, diziam. Grande. Perigosa. Silenciosa. Os cães não ousavam latir, apenas uivavam em harmonia mórbida com algum som grave e ancestral, que eu nunca ouvi.

O bar estava lotado, mas o ambiente parecia mais vazio a cada palavra dita. Uma sombra sem forma rastejava entre nós, alimentando-se do medo. Como era novo no bairro, ri baixinho e brinquei:

 

— Vocês se assustam muito fácil. Deve ser só um vira-lata bem grande, cheio de pulgas.

 

Saí do bar, o sorriso ainda pregado no rosto e, vi que já escurecia. Mais à frente, seu Zé estava parado, a silhueta imóvel. Fumava um cigarro de palha. O facho da brasa parecia um olho vermelho na penumbra. Ele apagou o cigarro na unha do dedão esquerdo e, sem uma palavra, caminhou ao meu lado.

Disse que o filho havia chegado de Minas Gerais fazia um mês. Estava morando com ele, mas passava os dias dormindo. Não trabalhava, não falava. Apenas dormia. Pela descrição, imaginei tê-lo visto no bar, um vulto no canto mais escuro.

Conversei algo sem importância, me despedi e segui para casa. Estava exausto. Tomei banho, jantei e me enfiei na cama cedo com meu livro sagrado. O sono me envolveu como um manto pesado.

Acordei no meio da madrugada com o latido do Pé de Pano, meu cachorro mestiço. Ele estava no fundo do quintal, e logo correu para a frente da casa, onde o silêncio o devorou. Acordei de vez ao ouvir outro barulho, um arranhar de garras na madeira. Se Pé de Pano estava na frente... quem estava no fundo?

Levantei-me devagar, o medo me guiando em passos leves. Fui até o último cômodo, onde a pequena janela dava para o quintal. Sem acender a luz, encostei o rosto no vidro. Ouvi uma respiração ofegante, úmida, carregada de um cheiro ácido, como o de um animal molhado. O terror me paralisou. Espiei por uma fresta e o que vi me roubou o fôlego: um olho enorme, amarelo e brilhante, cravado em mim.

 

— Tenho pulgas? — A voz era um sussurro gélido, uma garra arranhando meu crânio.

 

Meu grito rasgou a madrugada. A sombra do outro lado correu e pulou o muro com uma agilidade bestial. Me arrastei de volta para a cama, me escondendo sob os lençóis. O sono não voltou, apenas o medo, sussurrando no meu ouvido.

Pela manhã, arrastei-me para fora de casa. Havia um grupo na rua, todos em volta da carcaça destroçada do bezerro do Gil. A rua estava manchada de sangue. Falavam do bicho, do monstro. Organizaram uma caça.

Segui meu caminho e, mais adiante, vi o seu Zé descendo o morro. Ao seu lado, o filho, cabisbaixo, se apressava. Iam embora, voltando para Minas Gerais. Caminhamos em silêncio até a rodovia. Quando o ônibus chegou, o rapaz subiu sem olhar para trás.

Mal o veículo se moveu, uma das janelas se abriu. Olhei por instinto. O mesmo olhar amarelo e doentio me encarava. A voz chegou até mim, arrastada pelo vento gelado da manhã:

 

— O senhor não gosta de pulgas?

 

As palavras se enrolaram no meu pescoço como um laço. E eu soube que o mal jamais nos abandona. Apenas muda de pele.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

3ª Sexta-feira - Escovando os dentes

 


Escovando os dentes

 

Tinha a mania de ficar até tarde no computador nas sextas-feiras, jogando, vendo vídeos ou ouvindo podcasts de mistérios casuais. Achava tudo muito legal porque não trabalhava nos sábados, então estava de boa.

A primeira vez que percebi algo estranho foi numa dessas noites, quando o celular apagou de repente, mergulhando o quarto numa escuridão sufocante. A tela começou a piscar como se estivesse tentando comunicar algo em código Morse. E então, voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido. Mas a sensação de que algo estava errado já tinha se instalado.

Logo em seguida, senti um vento frio na nuca. Um sopro gelado e úmido, carregando um cheiro estranho, como de algo mofado, antigo. Levantei-me devagar e acendi a luz. Tudo parecia no lugar, o quarto fechado, janelas trancadas. Talvez fosse só cansaço.

Na semana seguinte, as coisas começaram a cair sozinhas. No começo, achei que era culpa minha. Eu tinha o hábito de jogar as roupas de qualquer jeito no cabideiro, então encontrar minha bermuda no chão parecia normal. Só que ela estava do outro lado do quarto. E mesmo assim, insisti em acreditar que eu mesmo a tinha arremessado sem querer.

Na noite seguinte, tomei o cuidado de dobrar a bermuda e guardá-la direitinho no guarda-roupa. Só que acordei com ela aos meus pés, na cama. O quarto trancado, ninguém mais ali. Um arrepio percorreu minha espinha.

Depois do trabalho, decidi registrar tudo isso. Quem sabe depois eu postaria, ou talvez fosse só para organizar os pensamentos. Sentei na cadeira, deixei a luz acesa e comecei a digitar. Logo nas primeiras linhas, senti uma presença. Era como se alguém estivesse inclinado sobre o meu ombro, lendo cada palavra escrita. Parei, olhei ao redor. Tudo parecia normal. Ou quase.

A sensação de que um vulto havia passado pela minha visão periférica e entrado no banheiro me incomodou. Me convenci de que era impossível, de que eu estava apenas sugestionado. Mas a cada pausa, aquele incômodo voltava. A sombra parecia sempre ali, à espreita, no canto do olho.

Continuei escrevendo até que uma frase no texto me chamou atenção: “Já é tarde, vá dormir.” Eu não lembrava de ter digitado aquilo. Li e reli, a frase parecia vibrar na tela. Deletei rapidamente. O relógio marcava quase meia-noite. Talvez fosse mesmo hora de descansar.

Decidi largar o texto para o dia seguinte. Troquei de roupa, apaguei a luz e me deitei. Só então percebi que não havia escovado os dentes. A luz do carregador do celular lançava um brilho fraco, então caminhei no escuro até o banheiro.

Acendi a luz do pequeno armário e me encarei no espelho. O rosto pálido, olhos fundos. Abri a porta do armário, escondendo o espelho, e peguei a escova de dentes. Quando fechei a porta, algo estava errado. O reflexo parecia... deslocado. Como se a sombra atrás de mim não fosse minha.

Virei rapidamente. Nada. O coração disparado. Acendi a luz principal do banheiro, enchendo o espaço de claridade. Coloquei a cabeça para fora e observei o quarto. Silêncio. Tudo no lugar.

Escovei os dentes e voltei para a cama. Assim que apaguei a luz, o celular brilhou novamente. Uma mensagem. O sono deu lugar ao medo. Abri a notificação.

“Já que escovou os dentes, boa noite.”

A mão tremia. A mensagem não tinha remetente. O quarto estava escuro. E eu não estava mais sozinho.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

5ª Sexta-feira - O bambuzal da rua Maia

 


O bambuzal da rua Maia

 

Nala, um motociclista sempre em busca de oportunidades para melhorar sua situação financeira, ouvia frequentemente histórias sobre o bambuzal na esquina da Rua Maia. Era um bambuzal volumoso, com centenas de bambus gigantes, curvados e imponentes. Alguns moradores do bairro diziam que um antigo residente havia escondido uma fortuna entre os bambus, temendo ser roubado, mas morreu antes de revelar o local exato. Em noites específicas, afirmavam ver a figura espectral do homem vigiando seu tesouro, vagando por entre os bambus. Relatavam ainda que aqueles que tentaram encontrar o dinheiro durante o dia nunca tiveram sucesso e, pior, muitos acabaram mortos ou gravemente feridos. Os sobreviventes afirmavam ter visto o velho vigilante do bambuzal rindo. Risadas essas que os atuais moradores também juram ouvir em certas noites.

Para Nala, tudo não passava de uma lenda urbana. Determinou-se a provar que o tesouro era real e que poderia encontrá-lo. Sem contar a ninguém, começou a passar todas as noites pelo bambuzal, esperando ver o tal vigilante.

Nas primeiras noites, tudo parecia normal. A rua silenciosa, o vento sussurrando entre os bambus que, como que dançando, mexiam-se de um lado a outro, mas nada de anormal. No entanto, em uma noite sem lua, enquanto estacionava sua moto em frente ao bambuzal, Nala sentiu um calafrio percorrer sua espinha. O ar parecia mais denso, e uma névoa fina começava a se formar ao redor.

De repente, entre os bambus, uma figura começou a se materializar. Era um homem de aparência envelhecida, roupas gastas e olhos que brilhavam com uma intensidade sobrenatural. Nala engoliu em seco, mas sua determinação falou mais alto.

 

— Você é quem está guardando o tesouro, velho? — perguntou, tentando manter a voz firme.

 

A figura não respondeu com palavras. Em vez disso, estendeu a mão ossuda, apontando para Nala enquanto caminhava em sua direção. Uma dor aguda atravessou o peito de Nala e, mesmo antes de o espectro alcançá-lo, ele caiu de joelhos, ofegante e sem conseguir respirar.

Visões começaram a inundar sua mente: pessoas sendo arrastadas para dentro do bambuzal, gritos de agonia, olhos cheios de terror. Cada imagem era mais vívida e aterrorizante que a anterior. Nala tentou se levantar, mas suas forças o abandonaram.

A última coisa que viu antes de perder a consciência foi a figura se aproximando, com um sorriso macabro nos lábios.

Na manhã seguinte, moradores encontraram a moto de Nala abandonada em frente ao bambuzal. Não havia sinal dele, apenas marcas profundas no chão, como se alguém tivesse sido arrastado para dentro da vegetação densa.

Aguardaram que Nala retornasse para pegar sua moto, mas ele nunca apareceu.

O único relato sobre esse episódio foi de um vizinho, morador a 100 metros do bambuzal, que acabara de acordar para ir ao trabalho de vigilante noturno e escutou o barulho dos bambus batendo, como se houvesse lá fora uma ventania muito forte. O ruído era intenso, como se os bambus estivessem se contorcendo, mas nem isso foi suficiente para impedi-lo de ouvir um grito de "Não me leve" e a palavra "socorro", que foi sumindo ao fundo, encoberta por risadas.

Assustado, abriu a porta e saiu à varanda, vendo tudo calmo e silencioso.

A lenda do bambuzal na Rua Maia ganhou mais um capítulo sombrio, e ninguém mais ousou desafiar o vigilante do tesouro.