sexta-feira, 18 de abril de 2025

4ª Sexta-feira - Uivos familiar



Uivos na família

 

Quando subia a ladeira que levava à minha rua naquela tarde, mal sabia eu que iniciava um encontro antigo, como se o destino já houvesse traçado aquele caminho sombrio.

Todos os dias, ao descer do ônibus na entrada do bairro, encontrava o seu Zé. Subíamos o morro juntos, sempre envoltos por uma névoa de rotina. Naquela tarde, contudo, algo pesava no ar. O seu Zé parecia preocupado, mas sua boca se fechava em silêncios pesados.

Eu não sabia muito sobre ele, apenas o nome que o eco do bairro lhe dava: “seu Zé”. Caminhávamos lado a lado, trocando palavras ocas, pequenas moedas de conversas sem valor. Mas naquela tarde, decidi parar no meio da subida para entrar no bar do Chiquinho. Seu Zé seguiu sozinho pela rua tortuosa, a figura se desmanchando na luz fraca do entardecer.

 

— Ô seu Dimiro, veio tomar uma com a gente? — A voz rouca de Dólar, um jovem do bairro, quebrou o silêncio.

— Que nada, só vim pegar uma encomenda da patroa com o Chiquinho.

 

Os rostos ao meu redor se fecharam novamente, as conversas se afogando em murmúrios. Falavam do sumiço de mais duas galinhas do seu Barba. Quando perguntei “como assim, mais duas?”, os relatos escorreram, viscosos, pela sala. Histórias de desaparecimentos, da cabra de seu Xico, do gato do seu Leôncio, do viveiro de codornas do Jacinto, devastado. Uma criatura faminta, diziam. Grande. Perigosa. Silenciosa. Os cães não ousavam latir, apenas uivavam em harmonia mórbida com algum som grave e ancestral, que eu nunca ouvi.

O bar estava lotado, mas o ambiente parecia mais vazio a cada palavra dita. Uma sombra sem forma rastejava entre nós, alimentando-se do medo. Como era novo no bairro, ri baixinho e brinquei:

 

— Vocês se assustam muito fácil. Deve ser só um vira-lata bem grande, cheio de pulgas.

 

Saí do bar, o sorriso ainda pregado no rosto e, vi que já escurecia. Mais à frente, seu Zé estava parado, a silhueta imóvel. Fumava um cigarro de palha. O facho da brasa parecia um olho vermelho na penumbra. Ele apagou o cigarro na unha do dedão esquerdo e, sem uma palavra, caminhou ao meu lado.

Disse que o filho havia chegado de Minas Gerais fazia um mês. Estava morando com ele, mas passava os dias dormindo. Não trabalhava, não falava. Apenas dormia. Pela descrição, imaginei tê-lo visto no bar, um vulto no canto mais escuro.

Conversei algo sem importância, me despedi e segui para casa. Estava exausto. Tomei banho, jantei e me enfiei na cama cedo com meu livro sagrado. O sono me envolveu como um manto pesado.

Acordei no meio da madrugada com o latido do Pé de Pano, meu cachorro mestiço. Ele estava no fundo do quintal, e logo correu para a frente da casa, onde o silêncio o devorou. Acordei de vez ao ouvir outro barulho, um arranhar de garras na madeira. Se Pé de Pano estava na frente... quem estava no fundo?

Levantei-me devagar, o medo me guiando em passos leves. Fui até o último cômodo, onde a pequena janela dava para o quintal. Sem acender a luz, encostei o rosto no vidro. Ouvi uma respiração ofegante, úmida, carregada de um cheiro ácido, como o de um animal molhado. O terror me paralisou. Espiei por uma fresta e o que vi me roubou o fôlego: um olho enorme, amarelo e brilhante, cravado em mim.

 

— Tenho pulgas? — A voz era um sussurro gélido, uma garra arranhando meu crânio.

 

Meu grito rasgou a madrugada. A sombra do outro lado correu e pulou o muro com uma agilidade bestial. Me arrastei de volta para a cama, me escondendo sob os lençóis. O sono não voltou, apenas o medo, sussurrando no meu ouvido.

Pela manhã, arrastei-me para fora de casa. Havia um grupo na rua, todos em volta da carcaça destroçada do bezerro do Gil. A rua estava manchada de sangue. Falavam do bicho, do monstro. Organizaram uma caça.

Segui meu caminho e, mais adiante, vi o seu Zé descendo o morro. Ao seu lado, o filho, cabisbaixo, se apressava. Iam embora, voltando para Minas Gerais. Caminhamos em silêncio até a rodovia. Quando o ônibus chegou, o rapaz subiu sem olhar para trás.

Mal o veículo se moveu, uma das janelas se abriu. Olhei por instinto. O mesmo olhar amarelo e doentio me encarava. A voz chegou até mim, arrastada pelo vento gelado da manhã:

 

— O senhor não gosta de pulgas?

 

As palavras se enrolaram no meu pescoço como um laço. E eu soube que o mal jamais nos abandona. Apenas muda de pele.

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