Uivos na família
Quando subia a
ladeira que levava à minha rua naquela tarde, mal sabia eu que iniciava um
encontro antigo, como se o destino já houvesse traçado aquele caminho sombrio.
Todos
os dias, ao descer do ônibus na entrada do bairro, encontrava o seu Zé.
Subíamos o morro juntos, sempre envoltos por uma névoa de rotina. Naquela
tarde, contudo, algo pesava no ar. O seu Zé parecia preocupado, mas sua boca se
fechava em silêncios pesados.
Eu
não sabia muito sobre ele, apenas o nome que o eco do bairro lhe dava: “seu
Zé”. Caminhávamos lado a lado, trocando palavras ocas, pequenas moedas de
conversas sem valor. Mas naquela tarde, decidi parar no meio da subida para
entrar no bar do Chiquinho. Seu Zé seguiu sozinho pela rua tortuosa, a figura
se desmanchando na luz fraca do entardecer.
—
Ô seu Dimiro, veio tomar uma com a gente? — A voz rouca de Dólar, um jovem do
bairro, quebrou o silêncio.
—
Que nada, só vim pegar uma encomenda da patroa com o Chiquinho.
Os
rostos ao meu redor se fecharam novamente, as conversas se afogando em
murmúrios. Falavam do sumiço de mais duas galinhas do seu Barba. Quando
perguntei “como assim, mais duas?”, os relatos escorreram, viscosos, pela sala.
Histórias de desaparecimentos, da cabra de seu Xico, do gato do seu Leôncio, do
viveiro de codornas do Jacinto, devastado. Uma criatura faminta, diziam.
Grande. Perigosa. Silenciosa. Os cães não ousavam latir, apenas uivavam em
harmonia mórbida com algum som grave e ancestral, que eu nunca ouvi.
O
bar estava lotado, mas o ambiente parecia mais vazio a cada palavra dita. Uma
sombra sem forma rastejava entre nós, alimentando-se do medo. Como era novo no
bairro, ri baixinho e brinquei:
—
Vocês se assustam muito fácil. Deve ser só um vira-lata bem grande, cheio de
pulgas.
Saí
do bar, o sorriso ainda pregado no rosto e, vi que já escurecia. Mais à frente,
seu Zé estava parado, a silhueta imóvel. Fumava um cigarro de palha. O facho da
brasa parecia um olho vermelho na penumbra. Ele apagou o cigarro na unha do
dedão esquerdo e, sem uma palavra, caminhou ao meu lado.
Disse
que o filho havia chegado de Minas Gerais fazia um mês. Estava morando com ele,
mas passava os dias dormindo. Não trabalhava, não falava. Apenas dormia. Pela
descrição, imaginei tê-lo visto no bar, um vulto no canto mais escuro.
Conversei
algo sem importância, me despedi e segui para casa. Estava exausto. Tomei
banho, jantei e me enfiei na cama cedo com meu livro sagrado. O sono me
envolveu como um manto pesado.
Acordei
no meio da madrugada com o latido do Pé de Pano, meu cachorro mestiço. Ele
estava no fundo do quintal, e logo correu para a frente da casa, onde o
silêncio o devorou. Acordei de vez ao ouvir outro barulho, um arranhar de
garras na madeira. Se Pé de Pano estava na frente... quem estava no fundo?
Levantei-me
devagar, o medo me guiando em passos leves. Fui até o último cômodo, onde a
pequena janela dava para o quintal. Sem acender a luz, encostei o rosto no
vidro. Ouvi uma respiração ofegante, úmida, carregada de um cheiro ácido, como
o de um animal molhado. O terror me paralisou. Espiei por uma fresta e o que vi
me roubou o fôlego: um olho enorme, amarelo e brilhante, cravado em mim.
—
Tenho pulgas? — A voz era um sussurro gélido, uma garra arranhando meu crânio.
Meu
grito rasgou a madrugada. A sombra do outro lado correu e pulou o muro com uma
agilidade bestial. Me arrastei de volta para a cama, me escondendo sob os
lençóis. O sono não voltou, apenas o medo, sussurrando no meu ouvido.
Pela
manhã, arrastei-me para fora de casa. Havia um grupo na rua, todos em volta da
carcaça destroçada do bezerro do Gil. A rua estava manchada de sangue. Falavam
do bicho, do monstro. Organizaram uma caça.
Segui
meu caminho e, mais adiante, vi o seu Zé descendo o morro. Ao seu lado, o
filho, cabisbaixo, se apressava. Iam embora, voltando para Minas Gerais.
Caminhamos em silêncio até a rodovia. Quando o ônibus chegou, o rapaz subiu sem
olhar para trás.
Mal
o veículo se moveu, uma das janelas se abriu. Olhei por instinto. O mesmo olhar
amarelo e doentio me encarava. A voz chegou até mim, arrastada pelo vento
gelado da manhã:
—
O senhor não gosta de pulgas?
As
palavras se enrolaram no meu pescoço como um laço. E eu soube que o mal jamais
nos abandona. Apenas muda de pele.
0 comentários:
Postar um comentário
Obrigado por comentar. Seu comentário e opiniões são muito importante para melhorar o blog.Se não quiser deixar... Fazer o que...