Esse ônibus vai para onde?
Mudei de bairro há dois anos. A fama sombria do Igarapés — com seus
“casos não explicados” cochichados entre vizinhos — foi o suficiente para me
convencer a ir embora. Mas...
Na empresa, virei piada. Tudo por ter contado duas situações que presenciei por
lá. A primeira foi no campo de futebol: um anjo de asas negras, parado, olhando
para o chão como se conversasse com alguém caído. Quando percebeu minha
presença... simplesmente sumiu. Eu sei — parece absurdo. Às vezes até duvido
de mim mesmo. Mas eu vi.
A segunda aconteceu na academia pública ao lado do campo. Estava vazia, mas
os aparelhos se moviam, como se invisíveis atletas estivessem malhando ali.
Na época, eu trabalhava como cobrador de ônibus e fazia apenas as duas últimas
viagens. Um colega me deixava na Dutra e, de lá, eu caminhava sozinho, pela
madrugada, até em casa. Como dizia uma tia minha: “Quer ver coisa estranha?
Caminha de madrugada pelo Igarapés.” E eu caminhava.
Agora moro do outro lado da cidade. Mas vi o anjo novamente. Duas vezes. Sem
asas.
Estava encostado em um poste, do outro lado da rua, quando cheguei do
trabalho. Braços cruzados. Olhar fixo em mim. Às vezes, murmurava, como se
houvesse alguém invisível ao seu lado.
Comentei com um amigo do antigo bairro. Ele confirmou: “Já viram ele no campo.
Dizem que cuida da alma de um rapaz assassinado lá.”
Não quis saber mais. Nem detalhes. Preferi trocar de turno e passei a trabalhar
nas primeiras viagens do dia. Achei que seria mais tranquilo.
E estava sendo.
Uma semana depois, já mais leve e até rindo com os passageiros, voltávamos
para o Igarapés quando um homem de capote e boné fez sinal. O motorista
parou. Ele subiu lentamente, os passos ressoando vazios no corredor. Veio em
direção à catraca.
Conversava com uma senhora quando ouvi a voz. Grave. Arrastada.
— Esse ônibus vai para onde?
Virei o rosto.
Gelei.
As palavras se esconderam no fundo da garganta. O ar me faltou.
Era ele. O anjo de asas negras. Agora, sem elas.
Ficou ali, sério, me encarando.
— Ele vai para o Igarapés? — repetiu.
O mundo emudeceu. Não consegui responder. O peito apertou. A visão
escureceu. Fechei os olhos e senti alguém me sacudindo.
— Filho, você está bem?
Abri os olhos.
Era a senhora, abanando-me com uma velha pasta de documentos.
Olhei em volta, desnorteado. O homem havia sumido.
Respirei fundo, tentando entender.
— Foi só um mal súbito, murmurei. Estou bem.
Ela sorriu, aliviada.
— Pensei que tivesse visto um fantasma. Ficou branco feito papel e parou de
respirar.
O motorista parou o ônibus, veio até mim. Confirmei que estava bem. Ele
assentiu, voltou ao volante e seguiu viagem.
A boa senhora apertou minha mão, pediu que respirasse fundo. Obedeci.
Os outros passageiros me olhavam em silêncio. Fiz sinal de que estava tudo certo,
levantando a mão.
E então vi.
Lá no último banco.
Ele também levantava a mão, olhando direto pra mim.
Era ele.
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