domingo, 9 de dezembro de 2018

Billy - Capítulo 0 - O início


Billy-
Por Ademir de Freitas




Filme: O passado não perdoa – 1960

Burt Lancaster - "É inútil persegui-lo no meio desta               tempestade, a poeira não nos deixa ver as montanhas".

Audie Murphy - "Ele está ferido, ele vai morrer por aí e o vento vai enterrá-lo".

Burt Lancaster - "Os caras como Elsing, não morrem se não forem mortos".






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O início


“Nunca acreditei nas histórias que me contaram ou nas notícias dos folhetins que circulavam na época. Muito sensacionalistas. Viviam publicando manchetes que não existiam, que não era bem verdade ou com muitos exageros. Confesso que, algumas vezes, me fizeram ficar angustiada, mas, com o tempo, aprendi a ignorar ou absorvê-las.
A chegada da Ferrovia Mildred & Co., que tinha o aval do governo para implantar e ampliar as linhas férreas na região e o objetivo de aproximar as grandes cidades e, assim escoar a produção do Condado com maior rapidez, trouxe um aumento considerável de pessoas ao Condado de Lincoln e também para a nossa pequena cidade. Por lá, até a imprensa já se instalara. É claro que, como muitos, também ficamos esperançosos e animados com a novidade.
Dessa vez, os boatos escutados pelos nossos homens, contratados de papai para trabalho na fazenda e nossa proteção, e que foram ao saloon em sua noite de folga, eram mais intensos. Sabíamos que a voz corria mais rápida que os impressos e que os fatos contados no comércio daquela confusa cidade, eram distorcidos demais. As notícias sempre chegavam através de alguém que veio de algum lugar e que ouvira ou vira algo que valia a pena relatar. A cada hora chegava uma versão mais diferente da outra, mas todas sempre com um final infeliz. Os homens evitavam comentar na minha frente, mas seus olhares os entregavam.
Até fiquei sabendo, que na cidade muitos comemoravam com o fato. Só não sei o porquê. Diziam nossos contratados, que as pessoas falavam alto, vibravam e até sorriam levantando brindes quando comentavam o grande acontecimento. Só poderiam ser pessoas ligadas a tal Associação de Lincoln conhecida como “A Casa”, propriedade da horrível Ferrovia Mildred ou até mesmo da Mineradora Santa Barbara que estava começando a chegar por essas bandas. As duas últimas, eram as grandes forças que se encontraram ali, mais próximas de nós, ambas, apoiadas pelos controladores econômicos do Condado e amparadas pela a vontade de expansão da região, pelo governo. Apesar de, algumas vezes se estranharem, quando se tratava de prejudicar os fazendeiros andavam lado a lado. Parece que essa parceria nos traria problemas maiores no futuro, talvez, maiores dos que passamos quase um ano antes.
Depois que o boato correu, mesmo distorcido, dizem que o Condado de Lincoln enlouquecera e nossa cidade também o acompanhou. Era um movimento nunca visto antes. A todo instante chegavam carruagens de tudo quanto é canto do país, espalhando poeira e pessoas pelos dois velhos hotéis locais. Muitos jornais das grandes cidades, enviaram seus representantes para apurar a verdadeira história e saber o que realmente aconteceu. Com eles vieram os fotógrafos e seus equipamentos modernos e enormes, registrando tudo o que podiam e o assunto era sempre o mesmo... Mataram Billy, The Kid.
Acredito que nunca vi antes em nossa região, tanto agito assim, e não entendo porque tanta repercussão. Não era como das outras vezes, aliás, diversas vezes. Mesmo assim, não me abalei. Houve um tempo em que eu o esperava voltar para casa, por vários dias. Ele dizia ser necessário partir para não nos colocar em perigo. Geralmente ia para o Novo México, ao Maxwell Ranch, rancho de um amigo muito considerado, mas os maldosos, diziam que era por causa de outra mulher. Isso não me incomodava, se era verdade ou não, era problema dele. Eu confiava nele, sabia que não faria nada que me magoasse. Num desses afastamentos, fiquei muito adoecida. É claro que todos disseram que era por causa dele, ou por um boato de que o haviam capturado enquanto ele e seus amigos estavam a caminho de casa, diziam que o enforcariam. Inclusive os boatos diziam que na captura dele, houve algumas mortes. Como era considerado um foragido, armaram-lhe uma emboscada a caminho de uma pequena cidade ao sul, sempre atrás da sonhada recompensa para quem o prendesse. Coitados. Sarei antes mesmo dele retornar dizendoque nada vira em seu caminho, a não ser alguns cavalos estranhamente vagando sem seus donos pelas trilhas secas. “Eram apenas uns doze ou quinze. ” - Dissera ele, sempre falando nunca saber contar direito. Mentiroso, fingia errar o número só para se valorizar ou enganar a quem o ouvia, mas mudou de assunto quando perguntado sobre os amigos. Apesar de sua fama e de um monte de pessoas o quererem morto, acusando-o de bandido, ladrão e até pistoleiro, eu e papai sabíamos quem realmente ele era e quanta gente ele ajudara. Soube que uma imensidão de acontecimentos o atingiram, entre eles o assassinato de seu último patrão por quem tinha um profundo respeito, ele e seus amigos então viraram homens da lei. Essa morte e a nomeação, foram o principal motivo para o início dessa vida turbulenta.
 
Eles eram denominados “Os Reguladores de Lincoln”, nomeados por um juiz e encarregados de capturar e levar à justiça alguns assassinos, inclusive os que participaram da morte de seu patrão. O que nos disseram e confirmaram, foi que passaram a ser perseguidos e ditos como assassinos e bandidos, depois que contrariaram as conivências de algumas autoridades e a Associação de fornecedores de carne bovina, um monopólio que crescia rapidamente no Condado e tinha contratos de fornecimento com o governo. Eram homens ricos, indicados e protegidos por representantes legais do país, abusavam de seu poder e tiravam o dinheiro e a vida de muitos criadores de gado da região. Todos comandados por dois fazendeiros, os supostos mandantes da morte de seu patrão. Mas tudo isso acontecera em Lincoln, uma cidade maior, não muito longe daqui, além do funil de pedra, caminho que nos ligava. Disseram ainda, que ele já pedira o perdão para o governador e este prometeu dar, mas esses homens horríveis o queriam morto, então o traíram.

Está certo que não era nenhum santo e que muito errara no caminho, mas agora apesar da pouca idade, era outro homem e esforçava-se para mudar mais. Algumas vezes, nas poucas que estava aqui e enquanto passeávamos a cavalo pelas colinas que cercavam nossa fazenda, confessou-me querer casar comigo, morar num rancho próximo e como papai, criar gado, viver feliz e ser livre. Que papai não o saiba, mas foi num desses passeios que o beijei pela primeira vez e descobri que realmente nos amávamos. Confesso que em alguns momentos enquanto o beijava, tinha medo de abrir os olhos e ver que ele não estava mais ali, que o tinham tirado de mim. Estávamos muito apaixonados. Quem me ouve falando assim dirá que é bobagem, que ele nunca largaria sua vida torta e aventureira. Que gostava de viver dessa forma, roubando e matando. Tudo bem, podem dizer o que quiserem, sei que uma coisa não justifica outra, mas eu o conhecia e o amava. E sei que ele me amava muito também, senão, não arriscaria passar tempos e tempos conosco na fazenda, se expondo à pistoleiros contratados pela Ferrovia ou por caçadores de prêmios vindo de todo país. Vi isso acontecer por duas vezes, mas ele e seus amigos deram conta do recado.
O dia estava muito agradável, apesar de pouquíssimas nuvens no lindo céu azul, o forte sol que nos atingia naquele horário parecia ter dado uma trégua. Eu estava sentada na varanda, na cadeira de balanço de papai, muito tranquila lendo um lindo romance, O Morro dos Ventos Uivantes, de Emile Bronte. O romance era recém-publicado em forma de livro, muito melhor para ler e conservar. Antes era em formato de folhetim. Ele era presente de papai. Comprou para mim quando fora a capital negociar seu gado, logo depois que tentaram lhe tomar a fazenda. Precisava de dinheiro para recuperar os estragos que o confronto deixara. Como estava meio entristecida com a partida de meu amado, mais uma vez fugindo dos capangas do Xerife, comprados pela Associação e a Ferrovia, papai quis me fazer um agrado e dar algo para que me ocupasse o tempo e me fizesse esquecer um pouco de tudo que havíamos passado. Mal sabia ele e principalmente eu, que minha história teria muitos pontos em comum com esse fantástico romance.
Apesar de absorvida pelo livro, as vezes levantava meus olhos para ver se ele, como diversas vezes fizera, viria correndo pela entrada da fazenda. Descia do cavalo próximo ao poço, cambaleando e fingindo-se de ferido, como sempre. Aquele homem lindo fazia meu coração disparar e eu me desesperar aflita ao vê-lo chegar assim. Na primeira vez, saí correndo ao seu encontro para socorrê-lo, deixando claro a todos e a papai, minha preocupação e envolvimento com aquele rapaz. Quando percebi sua brincadeira de mal gosto, deixei-o só lhe virando as costas, enquanto ele chamava-me para socorrê-lo. Isso lá é coisa para se brincar? Depois disso, quando vinha com essa graça, ficava impassível na cadeira de papai e o esperava chegar até a mim.
Apenas ficava parada. Confesso mais uma vez, que intimamente apreensiva, vendo-o aproximar cambaleante. Quando chegava nos primeiros degraus da varanda, fazia-se de cansado demais e se jogava sobre eles. Então escalava um a um praticamente se arrastando, fazendo as tábuas dos degraus rangerem e vinha engatinhando até a mim. Eu o aguardava, apavorada, congelada de medo, mas firme, procurava com os olhos por algum ferimento visível desconfiada de ser mais uma brincadeira boba. Chegando bem próximo, de cabeça baixa, tocava meu colo se amparando em minhas pernas, levantava a aba do seu chapéu com os dois dedos da mão esquerda em forma de arma e olhava-me mostrando seu sorriso torto e moleque.
- Eu consegui. Novamente não me pegaram.
Como ele era lindo sorrindo e levantando o canto da boca, sua característica que eu mais amava. É claro que ficava brava e até lhe dava uns tapas, mas não tinha como resistir aquele homem-moleque e suas brincadeiras. Por isso o chamavam: The Kid. Diziam também que ele matara um homem para cada ano vivido, mas muita gente de Fort Summer e até mesmo de Lincoln o adoravam. Sentia que seus amigos, agora em número menor, também agiam assim e confiavam naquele adorável homem. Acho que foi isso que encantou a mim e a papai.
Escutei o barulho de cavalos e voltei a razão, deixando de lado todas essas lembranças. Desapontei-me. Dessa vez não era ele.
Eram cinco cavaleiros que entravam a galope cadenciado em nossas terras, vindo em direção a casa. Papai apareceu ao meu lado, forçou o olhar naquela direção para identificar os visitantes, depois olhou para mim. Ajeitou, como tantas vezes, seu velho chapéu na cabeça e foi em direção aos cavaleiros.
Quem chegava era o novo delegado, com certeza também escolhido e bancado pela Ferrovia. Esse era o quarto xerife nomeado nos últimos três anos e valia tão pouco como seus antecessores. Outro calhorda, marionete dos homens que valiam menos que ele. Pude reconhecê-lo pelo brilho da estrela em seu peito, devia polir tanto o metal que quando o sol a encontrava, refletia como um raio lançado a cegar alguém. Estava acompanhado de quatro de seus auxiliares ou “parasitas” como dizíamos por aqui, todos também recém-chegados à cidade. Assim que entraram na fazenda, levantando muita poeira, diminuíram a velocidade quando viram nossos homens, com seus rifles a mão, acompanhando-os de longe. Isso também era ideia do meu amado. Convenceu papai a aceitar, dizendo ser para nossa proteção enquanto estivesse fora. Ele mesmo escolhera os homens em outras cidades pelas quais passou. Por ali qualquer um era suspeito de ser espião da Ferrovia Mildred & Co.. Dois desses homens juntaram-se a papai e caminharam ao seu lado com o rifle apoiado no braço e dedos no gatilho. O Xerife e seus homens pararam no meio do caminho, controlando seus cavalos, próximo ao poço principal que abastecia a casa, enquanto papai continuava andando em sua direção. O poço era um muito vistoso e conhecido na região. Possuía uma armação mecânica moderna que permitia extrair sua água sem esforço algum, apenas bastava baixar uma alavanca. Papai tinha muito orgulho dele, trouxera a ideia e o material da capital para construí-lo. Quando papai se aproximou dos homens, virou-se para mim como que para garantir que a distância era suficiente para minha segurança, caso acontecesse algo. Os cavaleiros cumprimentaram-me, ao longe, com um leve toque no chapéu. O Xerife desceu do cavalo, pegou uma caneca de metal que ficava presa perto da alavanca de bombeamento e a encheu de água do balde que ficava sobre o poço, bebeu e começou a dizer algo a papai. Parecia ser algo sério. Olharam em minha direção, gesticularam algumas vezes e então despediram-se. O Xerife juntou seus homens e partiu.
Apesar do cair da tarde e o sol vir de frente a mim, pude ver papai tirar o chapéu para enxugar o suor que escorria pelo seu rosto, afastar a poeira levantada pelo trote dos cavalos, fazer um sinal de tudo bem ao nosso pessoal e dispensar os dois acompanhantes que voltaram a sua posição inicial. Aproveitou para tomar um pouco de água, lavar o rosto e começou a voltar andando lentamente em direção a varanda, sempre com a cabeça baixa. Parecia enrolar a caminhada, para demorar mais a chegar.
Em frente à entrada da casa, tirou o chapéu novamente, bateu contra sua perna direita para tirar o que sobrou da poeira e subiu calmamente pelos velhos degraus ruidosos da varanda, degraus que rangeram agudamente como sempre. Parou ao meu lado e vendo que nem levantei a cabeça para olhá-lo, limpou a garganta fazendo aquele barulho horrível que eu conhecia muito bem e que demonstrava seu nervosismo e disse-me:
- Era o novo Xerife e seus covardes. Filha, dessa vez era mesmo ele. Pat Garrett o pegou em Fort Summer. Sinto muito. – Olhando ao longe evitando meus olhos, completou. – Tenho que consertar esses degraus barulhentos de uma vez ou acabara se soltando e derrubando alguém. Acho que teremos tempos difíceis novamente.
Após olhar para a escada, levantei calmamente minha cabeça e olhei para papai, que evitou o meu olhar, depois para os cavaleiros indo embora, já muito distantes. Na verdade, só conseguia ver suas silhuetas encobertas por uma nuvem de poeira. Sorri timidamente, balançando a cabeça, baixei meus olhos novamente para o livro e continuei a ler. Acho que estava entorpecida.
Sei que papai gostava muito dele também, apesar de sua fama não muito boa. Aprendera a respeitá-lo depois que soube de sua história e principalmente por ter-nos ajudado, junto a seus amigos, contra os bandidos daquela maldita Ferrovia. Enfrentara homens muito ruins, os poderosos donos de gado de Lincoln. Essa gente, havia forçado fazendeiros a vender seus animais somente à eles, ao preço que determinavam, causando muitas falências entre os criadores. Esse pessoal da Ferrovia, não era diferente. Viviam querendo tomar nossas terras, motivo pelo qual papai contratou tantos homens para ajudá-lo. Quando realmente quiseram fazer o que sempre ameaçavam, não apareceu nenhum xerife, Marshals ou outro agente da lei para nos ajudar. Estávamos perdidos, não conseguiríamos sobreviver. Foi ele, com seus amigos, que vieram em nosso socorro e nos ajudaram a superar os verdadeiros bandidos. Foi um confronto muito duro, com muitas perdas, estávamos para sucumbir, porém sem nenhum motivo aparente, ele e os amigos apareceram, colocando todos aqueles pistoleiros contratados pela Ferrovia para correrem daquela região, apesar deles sempre negarem sua participação. Os bandidos que não tiveram a sorte de fugir, ficaram estirados por toda parte em nossas terras. Isso afetou tanto a Ferrovia Mildred, que mudaram o rumo dos trilhos para longe dali. Nessa mesma época chegava outra empresa poderosa na região, a Mineradora Santa Barbara, que logo soube do acontecido, mas não se arriscou a envolver-se com a nossa fazenda.  Se ele era tão ruim quanto diziam, porque faria isso para ajudar papai? Não, não por mim. Nos conhecemos naquele dia horrível que pensei que perderia tudo. Em comemoração a esse grande feito, papai fez uma enorme festa na fazenda, e isso deve ter enfurecido ainda mais a poderosa Ferrovia. Foi uma grande comemoração. Papai mandou matar gado, contratou músicos e até trouxe um fotografo da cidade para registrar aquele momento. Hoje o registro desse encontro é o marcador de página do romance que leio. É uma imagem tirada em frente a nossa varanda, tendo ele a direita, eu a esquerda, e o papai no meio abraçando os dois. Lembrança daquele dia inesquecível em que comecei a conhecê-lo melhor. Houve ainda outros acontecimentos depois dessa ocasião, em que precisamos dele. Papai aprendeu a confiar e até o deixou me visitar para conversarmos.
Pois bem, apesar de tudo aquilo que diziam ou que os canalhas do Xerife informaram ao meu pai e que me fizeram chorar por muito tempo, como se tivessem arrancado meu coração e causado dores por muitos anos, apenas quem conhecia tão profundamente William Henry McCarty como eu, saberia que ele nunca quebraria um juramento feito a mim.... “Sua doce Anne”. Era como ele sempre me chamava.
Se ele jurou voltar para mim, ele voltaria. Ainda que tivesse de viver outra vida, e eu estaria a esperá-lo.
Com o livro fechado entre as mãos, li novamente o título do romance e apenas suspirei.
- Ah! Billy... seu menino mau”.

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