sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Fugindo de casa

Era perto de duas da tarde. O peso das últimas horas já me esmagava e já não aguentava mais.

Fui até meu quarto e peguei a latinha de leite que guardava no fundo do armário. Lá dentro, tudo o que eu tinha: um real e cinquenta em moedas e quinze bolinhas de gude. Joguei tudo no bolso, coloquei um agasalho e saí de casa. Decidido. Não ia mais voltar.

Não vou falar o porquê disso, acho que não tem mais importância, apenas que eu precisava fazê-lo.

Antes de passar pelo portão, parei para acariciar Zero. Ele abanava o rabo, alheio ao peso da despedida. Zero entrou na minha vida quando fiz sete anos, presente do tio Antônio. retinho, com focinho e patas brancas, parecia feito para mim. Tio Antônio dizia que sabia disso desde o dia em que o viu. E Zero parecia saber também. Assim que saiu do colo do meu tio, correu para mim sem hesitar.

Adotei o nome que meu pai usava quando brigava com ele: Zero. Ele dizia:

"Esse cachorro não vale nada", ele dizia. "Zero em higiene, zero em comportamento, só suja a casa, come chinelo e late o tempo todo." Apesar do tom, o nome pegou e assim ficou.

Bem, triste deixei Zero para trás. Fechei o portão e acho que foi pela primeira vez. Minha mãe sempre gritava para eu fechar o portão quando saía. Mas, como sempre, era tarde, eu já estava longe demais para voltar. Para dizer a verdade, eu até ouvia, mas nunca voltava para fechar. E agora também era.

Estava magoado. Meus pais exigiam muito de mim e nada do meu irmão mais novo, Luizinho. Até meus brinquedos favoritos foram passados para ele. E ele? Quebrou tudo. Não era só isso. Era uma gota num copo já cheio. Mas prefiro não entrar nesses detalhes.

Lá estava eu caminhando pelas ruas do bairro, com a cabeça cheia de planos para sumir pelo mundo. Passei pelo bar do Tomé, pelo açougue do Lucas e vi os meninos se reunindo no campinho para jogar contra o time da rua de cima. Não resisti. Por mais que eu quisesse fugir, uma disputa dessas era sagrada. 

Sabia que o time teria dificuldades sem mim. Tirei minha blusa e deixei minhas bolinhas de gude ao pé da trave aos cuidados do Frangão, nosso goleiro. Ele não ganhara o apelido por tomar gols, mas por ser magro e com o pescoço comprido, como os frangos dependurados no açougue do Lucas.

Já eu era o homem do meio-campo, desarmando os adversários e armando nossas jogadas. Às vezes, até fazia um gol. Antes disso, jogava na zaga e ganhei o apelido de Bodinho. Diziam que eu partia para cima com a cabeça baixa, como um bode, e acertava a bola — ou o adversário.

Mas depois de causar alguns pênaltis, fui escalado no meio-campo e nunca mais saí dali. Descobri o meu lugar.

O jogo foi emocionante. Eles marcavam, nós empatávamos. No fim, viramos o placar e vencemos. A comemoração foi calorosa, cheia de abraços e provocações aos rivais. Já estava saindo do campo quando Frangão me chamou para pegar minhas bolinhas. E aí me lembrei: eu estava fugindo. Mudei de direção, voltando ao meu plano.

Já estava a uma boa distância do campo, quando Galo Seco me chamou aos berros. Galo Seco era irmão do Frangão e tinha esse apelido por ter sido pego com a boca na botija, atirando pedra de bodoque no galo do seu Gervásio. Dizem que o velho Gervásio o agarrou pelo calção e ele saiu correndo fazendo poeira, mas sem sair do lugar. Parecia estar naquela máquina estranha que o povo da cidade compra para correr em cima. Coisa besta.

Voltei correndo até ele. Estava animado e me convidou para ir ganhar mais bolinhas dos moleques da rua de cima. Como já tínhamos dado uma surra neles no campinho, podíamos fazer barba e cabelo, ganhando tudo.

Bem, como já contei, meu fraco eram aquelas bolinhas. Não pensei duas vezes. Poderia fugir depois e com certeza com muito mais bolinhas no bolso.

Da nossa rua era eu, Galo Seco e Guto.

Enfrentamos dois magrelos e um garoto dentuço, o Martelo. Nunca tinha visto o tal Martelo antes, mas não hesitamos. Depois de um tempo, os três saíram sem nada — limpamos os bolsos deles. Esses moleques da rua de cima são uns perdedores.

Bem, tinha que continuar minha fuga. Voltamos ao campinho vitoriosos, dividindo o "prêmio".

Quando chegamos lá, ainda tinha muitos moleques soltando pipas e jogando bola. Contamos para eles sobre nossa vitória, mostramos as bolinhas que ganhamos e ficamos por ali, vendo as disputas de pipas.

Enquanto contávamos aos outros, uma pipa vermelha e branca surgiu no céu. Jacson estava na disputa, e todos se reuniram ao redor para torcer. Ali, todo mundo era entendido em pipas e enchiam Jacson de orientações e palpites.

- Solta a linha! Vai para cima! Agora, agora... Não o deixe ficar por cima... Para a direita! Para a esquerda! Cuidado com a rabiola dele...

E não é que Jacson conseguiu cortar?

Quando cortou a linha da outra pipa a correria começou. A pipa planava pelo vento, indo longe. Eu, o mais rápido, disparei. Ela caiu no pomar do seu Jeremias. Pulei a cerca e, com um salto certeiro, peguei a linha.

Enrolei-a rapidamente na mão, até que a pipa veio em minha direção e a peguei.

Todo feliz, saí orgulhoso do pomar do seu Jeremias com a pipa nas mãos. Os moleques me cercaram para vê-la. Realmente era uma pipa muito bonita e agora era minha. Meu troféu

De volta ao campinho, mostrei a pipa aos meninos, mas o dia estava terminando. As mães começaram a chamar, e cada um foi para sua casa. Eu também. Realmente, já estava terminando a tarde. O dia passará rápido demais.  

O dia foi lucrativo demais, ganhamos no futebol e limpamos as bolinhas dos caras da rua de cima e eu ainda peguei aquela bela pipa.

Quando entrei pelo portão, minha mãe apareceu e disse para eu me lavar. O jantar era costelinha — minha favorita. Corri para o banheiro. Enquanto tirava as bolinhas dos bolsos, minhas moedas caíram no chão. Olhei para elas e me lembrei: eu ia fugir.

Mas eu estava muito cansado e teria costelinha para o jantar.

Então pensei...

- “Ah!” Outro dia eu fujo”.

Só para saberem, isso aconteceu há vinte e dois anos atrás e nunca larguei de mamãe, papai, Zero e nem do Luizinho.

Ah! E claro, muito menos as costelinhas de mamãe.

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