Era
muito bom ver tudo do alto. Tudo ficava muito pequenininho, pareciam
formiguinhas andando para lá e para cá.
Adorava passar pela ponte espraiada e
contornar suas sustentações, era divertido. Mesmo isso acontecendo às duas
horas da madrugada de São Paulo. Somente nesse horário eu poderia fazê-lo para
ser discreto e não chamar atenção de quem quer que fosse.
Às vezes percebia alguém procurando algo no céu em minha direção e então sumia discretamente. Imaginem só, se as pessoas soubessem que posso fazer isso.
*
Minha vida no pequeno bairro, até que
era divertida, mas sempre senti que faltava algo. Sentia um vazio.
No início pensei que seria pela perda de
meu pai logo aos seis anos, depois pela dificuldade de ter um lar, já que
vivíamos mudando, procurando aluguéis mais baratos, mas estava longe de
acertar. Andava sempre querendo achar algo que não sabia o que era. Minha pobre
mãe sentia isso em mim, sabia que eu buscava algo e por mais que se esforçasse,
não conseguia fazer o pequeno filho feliz.
Um dia deitado em minha cama descobri
algo estranho e muito legal ao mesmo tempo. Tentando dormir me revirava de um
lado a outro, então levantei meu braço esquerdo e estiquei-o para que ficasse
reto. Fiquei assim alguns minutos observando minha mão e de repente, como se
estivesse equilibrando, percebi que mesmo se eu parasse de fazer o esforço para
mantê-lo reto e esticado, meu braço continuava assim, não caia. Achei estranho,
mas muito engraçado.
Num outro dia quando estava sozinho, no
fundo do quintal da casa de minha Vó, fiquei observando as frutas do pé de
ameixas. Por que as maiores, as mais bonitas, só davam no alto do pé? Onde
ninguém as conseguia pegar. De repente minha Vó encostou-se a mim e colocando
suas mãos em meu ombro disse:
— É querido, as mais saborosas estão lá,
bem no alto, veja como são grandes e bonitas. Como adoraria prová-las, mas não
temos como pegá-las, principalmente sem machucá-las, o que tiraria o seu melhor
sabor. Acho que elas, são destinadas aos passarinhos.
Era verdade, não tinha como eu ou meu
irmão mais velho subir até lá, era alto demais e muito arriscado, ninguém
deixaria. Para dizer a verdade, ninguém arriscaria subir tão alto, era muito
perigoso. Mas mesmo assim... No outro dia, logo cedinho, antes da Vovó
levantar-se para fazer o café, as maravilhosas ameixas estavam na mesa, a sua
espera.
Vovó enquanto pegava o coador e o bule, não tirava os olhos delas, sem entender como foram apareceram ali.
*
A única coisa que me lembro, foi de
fechar os olhos, abrir os braços e me imaginar saindo do chão. De repente senti
meus pés no vazio, fora do chão e assustado abri os olhos novamente. Fiquei
calmo, estava no chão, com os pés juntos e fixos, e então percebi algo em
minhas mãos. Lá estavam... Os galhos com as ameixas, na minha mão.
Depois disso, sempre fechava os olhos e
sentia meus pés levitarem. Até hoje sinto um frio na barriga quando começo a
perceber os dedos dos pés irem perdendo o contato com o chão.
Tinha um moleque muito chato na minha
rua, que vivia me atormentando, por eu não poder brincar com os demais em
algumas brincadeiras. Não conseguia correr e tinha pouco equilíbrio,
sempre me faltava ar, então ficava de fora de muitas delas. Mas esse moleque
era meu infortúnio. Só porque era o dono da única bola de couro da rua,
costurado a mão, então fazia questão de me deixar de fora do jogo, dizendo que
eu só atrapalhava.
Um dia lhe falei que ele iria perder aquela bola. Ele gargalhou e desfez de mim diante dos outros moleques que riam me apontando.
— Vai sonhando, vai para sua casa. Você não joga no time.
Essa foi a última vez que falou isso.
Foi muito engraçado ver todos parados de
boca aberta, olhando para a torre de energia, gigantesca, que ficava dentro da
empresa de freios, sem entender como aquela bola fora parar lá no alto, com se
dizendo: “Vem buscar-me!”
Qual bola? Adivinhem...
Só sei que não teve futebol na rua, até
que uma companhia da capital veio tirá-la de lá, três meses depois. Já
estragada de tanto sol e chuva
Todos os moleques começaram a me olhar
estranhamente, acho que é porque eu sorria quando olhava para bola, lá em cima.
Foi assim que tudo começou.
Já passei por muita coisa e até vi muita
gente importante, sempre assim, fechava os olhos e imaginava onde queria
estar... E pronto.
Por várias vezes quase fui pego em
flagrante e dei desculpas absurdas por minha presença em lugares que não tinha
como estar. Como ninguém achava um argumento que justificasse, e viam que eu
era apenas um moleque franzino, tiravam me dali e ficava por isso mesmo.
Por duas vezes me compliquei demais... Uma
com a visita de Elton John, eu adorava suas canções tinha que vê-lo de perto e
tentar contato, mesmo sem saber nada de inglês, consegui, mas levei uma
esfolada dos seguranças.
A outra?
Bem, foi quase igual o caso da bola. Um
amigo da escola, todo espertinho, me desafiava e provocava por causa de uma
menina que gostava, então prometi a ele que colocaria seu boné, de marca, caro,
na antena da casa do mais bravo do bairro. E fiz... Perdi o colega, mas nunca
mais ninguém da turma me encheu a paciência. A partir desse momento, virei o
monstrinho do bairro.
Mas o melhor que fiz com o meu dom, foi
ficar muitas noites na janela da vovó em seu quarto do hospital. Ficava olhando
através do vidro nas madrugadas, apreciando sua meiguice e beleza, enquanto
dormia. Deixava-lhe todos os dias uma lembrança na janela, geralmente flores, e
a acompanhava todas as noites enquanto ela tentava vencer algo ruim que a
deixava muito fraca. Até suas apreciadas ameixas deixei na janela. Mas não foi
o suficiente, não consegui ajudá-la. Até hoje, depois de tantos anos, sempre
venho aqui colocar uma flor, como aquelas, no local onde ela
descansa.
Sinto saudades de vovó e mesmo com esse
dom maluco, nada pude fazes para salvá-la.
Cresci e vou vivendo assim, sem revelar
a ninguém o que consigo fazer... Não quero que me vejam como uma pessoa
esquisita e anormal, só porque não entedem como as coisas funcionam.
Onde estou agora?
Sentado na mão do Cristo Redentor...
Como consigo? Não sei exatamente, e
confesso, nunca tentei entender, mas eu adoro poder voar.
Se você também pode...?
Não sei... Veremos.
Feche seus os olhos e me dê sua mão.
O céu nos espera e que você espere o céu
também, pois chegará lá.
Vamos voar?
Muito lindo... Os nossos pensamentos podem voar o mais alto que quisermos.
ResponderExcluirUm abraço Du Marquioli
Olá Du! Muito obrigado.
ExcluirÉ verdade mesmo quando criança podemos tudo e criamos coisas incríveis. Através do tempo nos restam as lembranças e os pensamentos para nos transportar para onde quisermos.
Um grande abraço.
Oi amigão, super legal seu blog estamos curtindo muito; a grande família Marquioli.
ResponderExcluirUm abraço Marcio Marquioli
Oi Marcio...
ExcluirObrigado por prestigiar e principalmente por comentar meus textos. Fico muito feliz por conhecer uma família assim unida e linda.
Paz e bem a todos desta casa, abraços.
Oi Freitas, adoro ler e quando meu pai me mostrou seu livro já comecei a ler, então resolvi entrar no seu blog.Este texto em especial me fez voar em meus pensamentos.
ResponderExcluirUm abraço Lídia Marquioli.
Olá Lidia, seja bem vinda ao blog.
ExcluirLer é o caminho mais curto para viajarmos e sonharmos de olhos abertos. Ler nos mostra como podemos nos melhorar a cada dia, como conhecer lugares além de nossa imaginação. Muito bom saber que gostas.
E obrigado por ler o livro, são pequenas histórias de certa forma vividas e descritas de formas simples. Espero que goste.
Abraços.