quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

O sonho de trinta anos

 Nessa noite, algo antigo retornou.

Não como lembrança, mas como se o tempo tivesse se dobrado sobre si mesmo, permitindo que eu pisasse novamente em um terreno onírico que havia visitado há cerca de trinta anos. Um sonho tão distante que quase se apagara, mas ainda pulsava em algum canto silencioso da memória.

Eu era jovem naquela primeira vez, nos meus vinte e poucos anos, e participava de uma excursão pequena, não mais que dez pessoas. Partimos de São Paulo em um avião modesto, rumo a uma região montanhosa nos Estados Unidos. O casal de guias se apresentou durante o voo, e a guia — linda, serena e firme — prendia minha atenção enquanto, com uma pequena tela nas mãos, explicava a jornada que faríamos.

Logo após a primeira parada, ainda em solo brasileiro, passaríamos um dia em uma pequena cidade, onde pegaríamos o helicóptero que completaria o trajeto. Fomos levados até a casa simples dos pais do guia, casal jovem e acolhedor, onde dormiríamos. Foi ali que me apaixonei pela guia. Foi ali que dormimos juntos. Tudo aconteceu com a naturalidade de quem vive um amor súbito e inevitável.

No dia seguinte, fomos almoçar antes de seguir viagem. Lembro do guia comprando, para seu sobrinho, uma miniatura de ônibus — frágil, simples, e talvez bonita apenas aos olhos de quem desejava agradar uma criança distante. O restaurante onde comemos era rústico, com paredes de madeira por onde um bode montanhês subia e descia usando pequenas plataformas presas na parede. Uma cena improvável e encantadora.

Terminada a refeição, dividimo-nos em carros para seguir até a casa dos pais da minha amada, de onde partiria o helicóptero. Ela trocou de lugar com um dos viajantes e veio ao meu lado, de mãos dadas. Encontramos sua casa tão simples quanto a do outro casal. Lá, uma festa singela acontecia. Seu pai, ainda jovem, estava gravemente doente, com pouco tempo de vida. Ela se despediria dele naquela manhã e, na festa, fui apresentado como “meu novo amor”. Havia balões brancos pendurados, flutuando num ar de alegria frágil. Cada um assinou um deles com votos de melhora. Eu o fiz também.

Depois disso, a memória da viagem se dilui. Sei apenas que seguimos para o grande avião que nos levaria aos Estados Unidos, e a história se dissolveu nos anos, como tantos sonhos que nos visitam uma única vez.

Até hoje.


Acordei dentro do mesmo sonho, mas agora com meus sessenta e dois anos. O roteiro era idêntico, mas as faces haviam envelhecido comigo. Onde antes estava a jovem guia, surgia agora uma senhora animada e simpática. Era ela — envelhecida, mas reconhecível na energia que sempre teve.

Chegamos à mesma casinha simples da primeira viagem, mas agora restaurada e bonita. O guia nos aguardava, já adulto, e eu não pude evitar o comentário: “É a mesma casa. Estou no mesmo sonho depois de trinta anos.”
Um colega me perguntou se eu já estivera ali antes. Não respondi.

A guia aproximou-se e, percebendo minha emoção contida, perguntou se eu conhecia aquele lugar. Contei-lhe o que lembrava do sonho antigo, e ela me abraçou longamente, como quem reencontra uma história que não sabia que tinha vivido.

Saímos para ver a cidade. A loja onde o guia comprara o pequeno ônibus ainda existia, mas irreconhecível, modernizada. Rimos juntos ao lembrar da compra ingênua de décadas atrás. Fomos, então, ao mesmo restaurante. O ambiente permanecia rústico. O dono era outro — descendente do primeiro. E, diante de nossos olhos, um bode montanhês subiu pelas paredes exatamente como o anterior. Não era o mesmo, mas repetia o ritual como se obedecesse a um roteiro guardado no tempo.

Após o almoço, novamente houve a troca de carros que nos colocou lado a lado, como antes.

Chegamos à casa dos pais da guia e, para minha surpresa, seu pai ainda estava vivo. Revelei quem eu era: o homem que, trinta anos antes, assinara um balão desejando sua melhora. Ele saiu e voltou trazendo o balão — agora murcho, mas intacto o suficiente para que eu reconhecesse minha própria assinatura.
Ali, sentado ao lado dela, assisti à alegria silenciosa daquele reencontro impossível.

Foi nesse instante que o latir dos meus sete cães rompeu o silêncio do sonho e me trouxe à consciência.

Acordei incrédulo, tomado por uma saudade que não sabia nomear. Saudade de uma história que não vivi, de um amor que existiu apenas em duas faixas paralelas de tempo e de um sentimento que, por alguma razão, decidiu me visitar novamente agora.

Uma saudade de algo que parece ter acontecido… e, de certa forma, aconteceu. Porque, ao sonhá-lo duas vezes, com trinta anos de distância, ele se tornou parte de mim.

domingo, 9 de novembro de 2025

O que é "querer"?

 Sem ter muito o que fazer e olhando a chuva cair...

Querer é necessidade de estar e ser

Há em mim um querer que não grita, apenas pulsa.
Não nasce do desejo, mas da ausência — da falta de ser inteiro no instante que passa.
É como se cada respiração lembrasse que estou,
mas ainda não sou tudo o que poderia ser.

 
O estar me ancora: é o chão, o agora, o corpo.
O ser me chama: é o horizonte, o invisível, o porvir.
E entre ambos, o querer é ponte —
tênue, silenciosa, mas firme o bastante
para atravessar o abismo entre o que existe
e o que busca existir.

 
Não quero mais do que isso:
sentir a vida me pressionar
e, ainda assim, escolher brilhar.
Sou carvão em processo,
mas não desisto do fogo.

Porque querer, para mim,
é necessidade de estar e ser.

(Ademir de Freitas)

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Bonus Sexta-feira - Não olhe na lixeira

 


        Não olhe na lixeira  

A rua Paresi era sem saída, ao lado da minha casa, era um problema.

No bairro periférico de Igarapés, onde ficava, as luzes da cidade mal

alcançavam, esgoto encanado quase não tinha. Linha de ônibus só no asfalto e

a uma certa distância dali. Eram só dois por dia, ou melhor, um de dia e outro no

Final da noite.

Essa rua era isolada de tudo e nem o coletor de lixo passava ali. Os moradores,

acostumados ao abandono das autoridades, estranharam a aparição repentina

de uma lixeira grande, na esquina do primeiro terreno na entrada da rua.

O proprietário do terreno, indignado pela ousadia da construção e por não ter

autorizado a instalação, destruiu a lixeira diante de todos, reduzindo-a a

pedaços.

No entanto, ao amanhecer de um novo dia, a lixeira estava lá, intacta, sem

qualquer sinal de dano.

Os vizinhos, incrédulos, especulavam sobre o ocorrido, atribuindo-o a

brincadeiras de mau gosto ou loucura do destruidor dela. Mas a realidade se

mostraria mais sombria.

Os primeiros a desaparecer foram catadores de recicláveis que sempre

recolhiam produtos dos moradores da rua sem saída. Relatos surgiram de que

aqueles que abriam a lixeira e depositavam seu saco de lixo, nada acontecia,

mas os que olhavam em seu interior no horário tarde da noite, eram sugados

para dentro, sumindo sem deixar vestígios.

Um único transeunte, ao passar tarde da noite pela janela de um ônibus,

testemunhou uma sombra sendo engolida pela lixeira.

— Vocês viram isso! — Gritou apontando para o início da rua, fazendo com

que várias pessoas corressem a sua janela.

Apesar de só dois passageiros afirmarem terem visto e reconhecerem por

fotos que a pessoa devorada pela lixeira como um catador conhecido, seus

relatos foram recebidos com descrença e escárnio.

A versão do caso cresceu e chegou até a cidade.

As autoridades locais, céticas, desconsideraram as denúncias, tratando-as

como lendas urbanas ou histórias fantasiosas para chamar a atenção.

Para acalmar os moradores, no final da tarde seguinte, a prefeitura destruiu outra

vez a sinistra lixeira e colocou uma caçamba de recolher entulhos em seu lugar,

mas no dia seguinte a lixeira estava novamente lá e a caçamba havia

desaparecido. E assim ficou por mais uns dias.

Certa noite, um antigo morador conhecido por todos na rua, também

desapareceu. A comunidade, tomada pelo medo, evitava a lixeira e colocaram

cartazes feito a mão com os dizeres:

“Não se aproximem dessa lixeira, perigo de morte!”

Mas a curiosidade humana é uma força poderosa.

Nova destruição ocorreu, nova caçamba colocada no local e uma dupla de

policiais foi colocada em vigia. No dia seguinte os policiais haviam desaparecidos

e a lixeira estava novamente lá.

Pensaram no padre local, talvez uma benção especial resolvesse, porém o

ridículo de benzer uma lixeira deixou a ideia de lado. Antes tivessem tentado.

Houve um novo desaparecimento.

O mistério da lixeira amaldiçoada permaneceu por dias, até que misteriosamente

ela desapareceu.

Alguns dizem que era um portal para outra dimensão; outros acreditam que é

uma manifestação do mal. Mas uma coisa é certa: aqueles que ousaram olhar

em seu interior nunca mais foram vistos.

Se um dia você se deparar com uma lixeira solitária em uma rua deserta,

lembre-se desta história e resista à tentação de espiar seu conteúdo.

A curiosidade pode ser irresistível, mas no bairro Igarapés, ela pode custar sua

vida.

Encerramento - O acerto final

     O acerto final

Estava digitando quando olhei para o relógio do computador: hoje, sexta-feira, 13 de junho de 2025.

23:15 (hora local)

Foi naquela noite antiga, quando aquele homem de olhos fundos, acompanhado de uma neblina, me procurou no portão e que tudo começou.

Disse que queria histórias. Pediu que eu contasse o que sussurravam as sombras daqui. Na hora, achei estranho. Hoje entendo. Não foi um pedido. Foi um acerto.

Treze contos já foram contados. Treze fissuras abertas nos recantos do Igarapés. Mas agora... é a vez dele.

23:30 (hora local)

As luzes começam a piscar. Sinto. Há alguém está atrás de mim.

Devagar, viro a cabeça. É ele. O mesmo homem sinistro. Mas agora vejo detalhes que antes não notei. Me parece familiar.

— Disse pra contar as histórias do Igarapés — sua voz ecoa como se viesse de todos os lugares que escrevi. — Contou direitinho. Cada palavra no lugar certo. Não exatamente o que aconteceu, mas quem vive aqui lembrara de algo ao ler.

Ele caminha pela casa, seus passos como se conhecesse bem minha casa fazem o som de folhas secas. Então pega meus papéis e lendo ri.

— A lagoa agora reflete o que não deveria existir. Pobre velho e sua neta, eu os avisei. Presença em casa, isso sempre teve e a muitos que ainda nem percebem. Uivos, lobo... Não sei disso não... rsrsrs. O bambuzal sussurra nomes de quem ainda não morreu. Esse do lanche foi interessante. Destinado a alguém? — Ele me encara. — Com o vizinho, requer cuidado. O pregador... Belo trabalho.

Sinto um frio que vem de dentro.

— Cada história foi uma chave, não foi? — contínuo, tentando entender. — Você me usou para abrir algo?

— Abrir? — Ele ri, um som que lembra o Seu Valdir, mas distorcido. — Não, meu caro escriba. Para chamar. Cada conto foi um convite a lembrança. Um chamado para que eles viessem. Nem todos esquecem o que aconteceu nesse bairro.

23:45 (hora local)

A casa parece respirar. As paredes gemem. E eu percebo: não são gemidos. São vozes. Todas as vozes dos meus contos, sussurrando juntas.

— Eles estão aqui agora — ele diz, abrindo os braços. — Todos. O homem da lagoa, o passageiro do ônibus, a professorinha, O velho do bambuzal... Treze aberturas, treze presenças. E você... você foi o anfritrião.

Ele estende uma folha em branco.

— Só falta uma coisa. Seu nome. Como autor da passagem. Como aquele que trouxe o Outro Lado para cá.

— E se eu não assinar?

Ele sorri, e reconheço esse sorriso. É o mesmo que imaginei no rosto do pregador, e no espectro no espelho, em todos os personagens sinistros que criei.

— Você vai assinar. Porque não é mais você quem escolhe. Há treze sextas-feiras, você deixou de ser só o autor. — Ele se inclina por sobre minha mesa. — Agora você é apenas... um personagem.

A caneta está na minha mão. Não lembro de tê-la pegado. Meus dedos se movem sozinhos, traçando letras que conheço, mas que parecem vir de outra pessoa.

24:00 (hora local)

Ele olha o relógio sorrindo. As luzes se apagam de vez. Na escuridão, ouço risadas que reconheço: são minhas próprias risadas, vindas dos contos que escrevi.

Minha assinatura está completa no papel.

— Bem-vindo ao Igarapés — ele sussurra. — O verdadeiro Igarapés.

Quando a luz voltou, eu estava do lado de fora. No portão. Esperando.

Agora sou eu quem bate nas casas à meia-noite. Pedindo para as pessoas contarem histórias. Fazendo novos acertos.

O Igarapés sempre precisou de alguém para abrir as portas. E sempre haverá alguém disposto a escrever.

Se você está lendo isso... cuidado com as histórias que conta. Principalmente se forem sobre o bairro Igarapés.


13ª - Sexta-feira - O vizinho

 



          O vizinho


Toninho sempre soube que trabalhar como vigilante no bairro Igarapés

significava ver coisas que os outros não viam. Três da manhã de uma terça-feira

qualquer, ele estava fazendo sua ronda quando viu o caminhão de mudança sair

da chácara do nº 841.

Estranho. A casa estava vazia há anos, desde que o senhor Dinei se mudou para

longe dali. E mudança às três da manhã? Quem se muda de madrugada?

Acompanhou a distância o caminhão da mudança sair do bairro e voltou sua moto

para retornar até casa de onde partiram. Ele chegou a ver o homem que contratara

a mudança. Era alto, magro, usava um sobretudo mesmo no calor de março. Não

falava, apenas apontava onde e o que fazer. Quando terminou, pagou os

carregadores em dinheiro e eles sumiram como se nunca tivessem existido.

Quando retornou na casa tudo estava no escuro, as luzas se apagaram.

Na manhã seguinte, Toninho tentou contar para a vizinhança, mas soou como

conversa de quem trabalha de madrugada e vê coisas que não existem.

Algumas semanas se passaram e nada acontecia durante o dia naquela casa, seu

portão continuava com dois grandes cadeados fechando o portão, como se ainda

estive vazia, porém quando a noite chegava, Toninho ouvia os cachorros

caminhando no quintal. Deviam ser grandes pelo barulho que vaziam.

Durante o dia nunca viram ninguém na casa, lixo colocado pelo lado de fora, ou

qualquer barulho dos cachorros.

Numa outra madrugada, Toninho viu um sedam preto entrar e não o viu sair mais.

Teria algo sobrenatural acontecendo ali? O que esse vizinho faz que ninguém o vê

sair ou chegar? A única coisa que Toninho tinha certeza, era que os dois cães não

eram pets e sim guardiões que só apareciam a noite.

Um dia ele parou sua moto, próximo ao portão, desceu e foi ver o que acontecia

naquela casa a noite e os cães quase derrubaram o portão fazendo-o sair

disparado com sua moto.

Na noite seguinte, curioso e inquieto, Toninho resolveu voltar. Estacionou a moto

mais longe, caminhando até a casa do 841 com o motor desligado, os faróis

apagados. O portão permanecia trancado com eles, dois cadeados, mas os cães

não latiam. Não havia som algum, exceto o canto abafado de um grilo.

Silêncio demais.

Ele se aproximou do portão devagar, até encostar os dedos nas grades frias. Foi

então que ouviu. Um sussurro vindo do fundo do quintal.

— Toninho...

Recuou, o coração batendo no pescoço. Olhou para os lados. Ninguém. Mas a voz

tinha dito seu nome. Com clareza. Como se o chamassem de dentro de um sonho

— ou de um pesadelo.

E então os cães apareceram.

Ou o que pareciam ser cães.

Seus olhos não refletiam luz. Eram esferas negras alaranjadas, profundas, como

buracos no tecido da noite. Tinham corpo de animal, mas seus movimentos

eram... errados. Eram rápidos demais. Silenciosos demais. Um deles parou diante

do portão. Encarou Toninho e ele ouviu em sua mente.

— Ainda não é sua hora.

Toninho tropeçou para trás, caiu sentado no asfalto. Quando ergueu o olhar, a

criatura havia sumido. A casa estava apagada novamente. Nem um som. Nem

respiração. Nem grilo.

No dia seguinte, Toninho tirou folga. Disse que estava doente. Trancou-se em casa,

com todas as luzes acesas. Mas o medo não passava. Tinha certeza de que aquele

homem do sobretudo não era apenas um vizinho excêntrico. E os cães não

estavam ali para guardar a casa — estavam ali para guardar o que estava dentro

dela.

Na madrugada seguinte, Toninho não conseguiu resistir. Estacionou a moto um

pouco mais longe e voltou a pé, passos cuidadosos, olhos atentos. Queria

observar. Só observar. Nada de tocar o portão outra vez.

Mas a casa parecia... diferente. Quieta.

Não havia cadeado. O portão estava apenas encostado.

Sentiu um arrepio na espinha. Aquilo não fazia sentido. Ninguém mexia naquele

portão há semanas.

Respirou fundo, deu dois passos à frente, mas parou. Algo no instinto lhe dizia

para não passar dali.

Foi então que percebeu: havia alguém na varanda. O homem do sobretudo.

Sentado numa cadeira de balanço, imóvel, de cabeça baixa.

Toninho não conseguia ver seu rosto. Nem os olhos. Mas sentia o peso daquele

olhar, mesmo de longe.

Quis recuar, mas seus pés não obedeceram de imediato.

E então, como se o homem o tivesse ouvido pensar, ergueu lentamente o rosto.

E sorriu.

Um sorriso sem alegria. Apenas a curva seca de quem sabe mais do que deveria.

Toninho virou-se de súbito, montou na moto e foi embora sem olhar para trás.

Nunca contou aquilo pra ninguém.

Nos dias seguintes, o portão voltou a estar trancado com os dois cadeados. Os

cães voltaram a rondar à noite. A casa seguiu silenciosa durante o dia, como se

nada tivesse acontecido.

Mas Toninho mudou.

Parou de fazer ronda naquela rua.

E, toda vez que passava perto da casa 841 — mesmo de longe — sentia o mesmo

arrepio.

Como se alguém, lá de dentro, ainda estivesse esperando por ele.