O pregador e o poço
Todo mundo, aqui no Igarapés, lembra do Pregador da Esquina.
Um sujeito esquisito, magro, de olhar tão fundo que parecia enxergar o que
ninguém mais via. Ele aparecia todo domingo, bem ali, na esquina do campo.
Ficava de pé, segurando aquele livro velho, com capa rasgada, folhas amareladas
e cheias de rabiscos.
Não era bem uma Bíblia. Era... sei lá. Um livro de avisos. De alertas.
Ele não falava de Deus, nem de céu. Ele falava do mal que crescia ali. E sempre
começava do mesmo jeito, abrindo o livro e lendo em voz alta:
— “O poço está aberto. Fujam dele.”
Eu não sei se, na época, alguém levava isso a sério. Uns riam. Outros
atravessavam pra calçada oposta. Mas quem parava pra ouvir... saía de lá meio
estranho, olhando pros lados, meio desconfiado.
Ele falava que o bairro comprometido. Que tinha uma coisa aqui. Uma coisa
antiga. Um mal que se escondia nas sombras, na água da lagoa, nos meio dos
bambuzais, na fria neblina do outono,... e principalmente... naquele poço velho
nos fundos da casa dele, na Rua Tupari.
— “Foi dali que começou. E dali não deveria ter saído...” — dizia, apontando pro
chão, com o dedo torto e sujo.
E não era só papo não. Ele citava sua casa nº666 na Rua Tupari — aquela dos
barulhos, das panelas voando. Falava do bar que fechou depois de recusar uma
pinga a um estranho. E até do dia em que um andarilho apareceu vindo da rodovia
Dutra, falando que o fim do mundo começava... aqui.
Só que, de uma hora pra outra, o Pregador sumiu. Simples assim.
A porta da casa dele ficou aberta. As luzes apagadas. O poço no fundo do
quintal... trancado com uma tampa velha e rachada.
E foi aí que começaram os gritos.
Quem mora por ali, jura que ouviu — e eu também ouvi —, bem no meio da
madrugada, aquela voz rouca, sufocada, saindo do poço:
— “ME TIREM DAQUI! PELO AMOR DE DEUS, ME TIREM DO POÇO!”
Sabe aquele tipo de coisa que você quer muito acreditar que é sua cabeça
pregando peça? Pois é. Mas não era. Vizinhos foram lá, iluminaram o poço,
jogaram corda... nada. Os bombeiros foram chamados e nada.
Só eco. Só vazio. Só aquele cheiro estranho de terra molhada misturado com...
não sei dizer... ferrugem talvez... ou coisa podre.
Foram três noites assim. Grito. Silêncio. Grito. Silêncio. Até que... acabou.
No domingo, quem passou na esquina do campo achou o livro.
Aquele mesmo. A capa toda encharcada, aberta bem na primeira página.
E lá estava, escrito em letras tortas, meio tremidas:
“Estou no Poço das Almas. Cuidem do que vive nesse bairro. Não olhem para
trás.”
Desde então... Bom... Se você mora aqui, sabe.
Sabe que a casa 666 nunca mais teve quem se atrevesse a morar. Que no campo,
na Rua Maia... bem... melhor nem falar. E que a lagoa... ficou mais escura.
E, de vez em quando... quando o vento bate mais forte... se escuta, vindo lá da
esquina:
— “O mal mora aqui...”
E se você tiver juízo... não olha pra trás.
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