Seu Valdir
Sabiam apenas que era sorridente, calado, e vivia sozinho num sítio no fim da rua
de barro, ali perto da caixa d’água do bairro.
Todo dia era a mesma coisa: bem cedo, ele surgia no pasto com o chapéu de
palha e um balde na mão, indo cuidar das vacas e das galinhas. Às vezes parava,
limpava o suor da testa com o braço e acenava para quem passava pela estrada
de chão. Sempre com aquele sorriso largo e os olhos semicerrados pelo sol.
Não falava muito, mas respondia aos gritos com um gesto, uma piscadinha ou
aquele riso mudo, quase infantil. As crianças, ao voltarem da escola, já sabiam:
havia sempre um cesto de frutas frescas na porteira do sítio. Enchiam as
mochilas, riam alto e gritavam um “obrigado!” para o velho, que as observava da
varanda, balançando na cadeira de taquara.
Todo sábado, seu Valdir descia até o mercadinho da Lagoa. Comprava alguns
mantimentos e voltava devagar, sacolas plásticas nas mãos, passos arrastados,
olhar sereno.
Foi só na segunda semana de abril que o silêncio começou a incomodar.
Chamavam por ele da porteira. E nada. Ele até olhava, parava o que estava
fazendo, virava o rosto devagar demais. Depois voltava às tarefas, mas sem o
sorriso.
— Estranho, não é? — comentou seu Geraldo com a filha. — Deve tá doente… ou
emburrado com alguém.
Mas ninguém via ninguém entrando ou saindo daquele sítio além dele mesmo.
Na quinta-feira à noite, feriado do Dia do Trabalhador, foi o Tião Moreno quem se
preocupou de verdade. Um cheiro ruim se espalhava pelo ar. Achou que algum
bicho tivesse morrido. Lembrou que, na noite anterior, vira o velho Valdir andando
pelo terreiro com uma lamparina acesa, falando sozinho, como se procurasse algo
no pasto.
Na sexta, resolveu ir até lá com a desculpa de querer comprar uns legumes.
Chamou do portão, bateu palma, gritou:
— Ô, seu Valdir! O senhor tá aí?
Nada.
Empurrou a porteira, que rangeu devagar. A trilha de terra batida ainda estava
úmida, como se alguém tivesse passado por ali há pouco. O silêncio parecia
escutar.
Na varanda, a cadeira de balanço oscilava sozinha, como se alguém acabasse de
se levantar. A porta da casa estava entreaberta.
— Seu Valdir…?
Entrou devagar. A casa cheirava a coisa velha, poeira e abandono. Os pratos sujos
na pia. No fogão, uma panela de arroz embolorado. Um prato com restos de
comida coberto de formigas sobre a mesa.
Nenhum sinal dele.
O estômago de Tião embrulhou. Saiu dali apressado e foi direto chamar a polícia.
Chegaram ao fim da tarde, quase noite. Dois soldados, uma viatura, e um silêncio
pesado. Vasculharam a casa, o terreiro, os arredores. Encontraram os animais
soltos, alguns magros, outros mortos no chiqueiro.
E sob um pé de manga, no canto do pasto, encontraram o corpo.
Seu Valdir. Inchado. Roxo. Coberto de moscas.
O legista foi direto: fazia pelo menos duas semanas que estava morto.
Mas aquilo não fazia o menor sentido.
— Como assim, duas semanas? — espantou-se dona Vilma. — Eu vi ele
anteontem indo tirar leite das vaquinhas! Chamei, ele se virou na minha direção…
mas não respondeu.
— Comigo foi igual — disse seu Alfredo. — Uns dias atrás, vi ele levando o cesto de
frutas. Mas meu menino falou que não tinha nada na porteira.
— Ele me olhou… — murmurou Tião, pálido. — Me olhou sem sorrir. E nem
acenou…
A polícia refez as rotas, conversou com os vizinhos, analisou imagens do
mercadinho. Nada de anormal.
Até que Carlão mostrou um vídeo gravado no celular três dias antes da descoberta
do corpo. Ele filmava um bando de pássaros que sobrevoava o sítio,
estranhamente inquietos.
No fundo da imagem, seu Valdir aparece saindo do mato. Passos arrastados.
Cabeça baixa. O rosto oculto pela sombra.
De repente, ele para. E vira-se devagar, direto para a câmera. Olhos sem brilho.
Sérios. Sem piscar.
Desde então, moradores juram ver um homem velho parado no pasto quando a
noite cai. Segurando um lampião. Olhando em silêncio.
Sem sorrir.
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