A última aula
A escola estadual ficava no fim de uma rua sem saída, cercada por árvores
antigas que lançavam sombras compridas nas manhãs cinzentas. Era um prédio
antigo, de janelas estreitas e silêncio grosso. Poucos ousavam passar por lá à
noite. Diziam que, depois que o último aluno saía, algo ali continuava acordado.
Márcio era o zelador e caseiro da escola havia alguns anos. Já tinha sido aluno por
ali — um dos bons, segundo diziam. Na juventude, como muitos outros garotos,
era encantado pela professora Solange. Linda, doce e com uma voz calma que
parecia acalmar até as paredes da escola. Tinha o hábito de agradecer o dia com
um beijo na face dela, e relutava em ir embora. Assim como tantos outros, ficava
só para se despedir.
Solange era mais que uma professora. Era a alma da escola. Organizou
campanhas para arrecadar alimentos, roupas, livros. Tinha um carinho especial
pelos alunos mais esquecidos pela sorte — entre eles, Márcio. Quando ele pediu
ajuda para um teste de emprego, ela não apenas aceitou, como se comprometeu
a escrever uma carta de recomendação.
Naquela semana, Solange passou a dar aulas extras só para ele. Dizia que ele
tinha um futuro bonito, que bastava querer. Na última noite de reforço, ela lhe
disse que o dia seguinte traria uma aula especial, a última antes de teste que faria
para o emprego. Márcio foi para casa leve, esperançoso, como quem carrega um
segredo bom.
Mas naquela madrugada, tudo escureceu. Solange morreu subitamente, vítima de
um infarto fulminante. Márcio não suportou. Sentiu-se traído pela vida, pela sorte,
por Deus. Largou os estudos, os sonhos, e se lançou no mundo de erros que
sempre evitara.
Anos se passaram. O menino promissor deu lugar a um homem endurecido, de
olhos fundos e palavras curtas. A única oportunidade que apareceu foi a de
trabalhar como caseiro na mesma escola que agora evitava olhar de frente.
Aceitou. Não por vontade, mas por necessidade.
Naquela noite, havia algo no ar. Um vento mais frio, um silêncio mais pesado.
Tomou um gole de cachaça e saiu para apagar as luzes do pátio. Tudo estava em
ordem. As salas escuras, os banheiros vazios, a secretaria em silêncio. Quando já
ia se recolher, notou uma luz acesa no segundo andar. Era a antiga sala onde
estudava.
Com a visão meio turva, pensou estar vendo coisas. Mas então, um vulto passou
diante da janela e acenou.
— Molecada abusada... — resmungou, largando a garrafa no chão.
Subiu as escadas com pressa, pronto para dar uma bronca. Mas ao abrir a porta
da sala, encontrou o espaço vazio. Apenas o silêncio — e uma frase no quadronegro:
"Só perde a razão quem a tem."
A frase que Solange escrevia toda aula de reforço. Seu coração disparou. Passou
os olhos pela sala. Nada. Só o som de sua própria respiração. Caminhou até o
quadro e pegou o apagador, já trêmulo.
Quando ia tocar a primeira letra, uma voz ecoou do fundo da sala:
— É assim que se perde a razão.
O apagador caiu de sua mão. Ele virou-se num salto — e ali estava ela.
Solange. Intacta. Os mesmos olhos serenos, o mesmo vestido azul, o mesmo
gesto com as mãos. Mas com uma luz estranha ao redor, como se não
pertencesse mais a esse mundo.
— Márcio... — disse ela, com doçura. — Não estou feliz com as escolhas que fez.
Mas ainda há tempo. Sente-se na sua carteira. Temos uma última aula para
terminar.
Ele, como um menino assombrado, obedeceu. Sentou-se na primeira carteira da
fila, olhos marejados, mãos trêmulas. A aula começou. Mas do que foi dito ali, ele
jamais contou a ninguém. Nem mesmo para a esposa.
No dia seguinte, largou a cachaça, procurou um curso e voltou a estudar. Dizem
que falava sozinho nas madrugadas, chamando alguém de “professorinha”. A
esposa jura que ouviu.
Hoje, Márcio é um empresário respeitado no bairro Igarapés. Mora numa casa de
frente para o antigo campo, atrás da escola. E em algumas noites, ao olhar pela
janela, vê a luz acesa na sala do segundo andar — a antiga sala de aula. Ele sorri.
Não por medo, mas por gratidão.
Afinal, nunca é tarde para a última aula
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