sexta-feira, 27 de junho de 2025

13ª - Sexta-feira - O vizinho

 



          O vizinho


Toninho sempre soube que trabalhar como vigilante no bairro Igarapés

significava ver coisas que os outros não viam. Três da manhã de uma terça-feira

qualquer, ele estava fazendo sua ronda quando viu o caminhão de mudança sair

da chácara do nº 841.

Estranho. A casa estava vazia há anos, desde que o senhor Dinei se mudou para

longe dali. E mudança às três da manhã? Quem se muda de madrugada?

Acompanhou a distância o caminhão da mudança sair do bairro e voltou sua moto

para retornar até casa de onde partiram. Ele chegou a ver o homem que contratara

a mudança. Era alto, magro, usava um sobretudo mesmo no calor de março. Não

falava, apenas apontava onde e o que fazer. Quando terminou, pagou os

carregadores em dinheiro e eles sumiram como se nunca tivessem existido.

Quando retornou na casa tudo estava no escuro, as luzas se apagaram.

Na manhã seguinte, Toninho tentou contar para a vizinhança, mas soou como

conversa de quem trabalha de madrugada e vê coisas que não existem.

Algumas semanas se passaram e nada acontecia durante o dia naquela casa, seu

portão continuava com dois grandes cadeados fechando o portão, como se ainda

estive vazia, porém quando a noite chegava, Toninho ouvia os cachorros

caminhando no quintal. Deviam ser grandes pelo barulho que vaziam.

Durante o dia nunca viram ninguém na casa, lixo colocado pelo lado de fora, ou

qualquer barulho dos cachorros.

Numa outra madrugada, Toninho viu um sedam preto entrar e não o viu sair mais.

Teria algo sobrenatural acontecendo ali? O que esse vizinho faz que ninguém o vê

sair ou chegar? A única coisa que Toninho tinha certeza, era que os dois cães não

eram pets e sim guardiões que só apareciam a noite.

Um dia ele parou sua moto, próximo ao portão, desceu e foi ver o que acontecia

naquela casa a noite e os cães quase derrubaram o portão fazendo-o sair

disparado com sua moto.

Na noite seguinte, curioso e inquieto, Toninho resolveu voltar. Estacionou a moto

mais longe, caminhando até a casa do 841 com o motor desligado, os faróis

apagados. O portão permanecia trancado com eles, dois cadeados, mas os cães

não latiam. Não havia som algum, exceto o canto abafado de um grilo.

Silêncio demais.

Ele se aproximou do portão devagar, até encostar os dedos nas grades frias. Foi

então que ouviu. Um sussurro vindo do fundo do quintal.

— Toninho...

Recuou, o coração batendo no pescoço. Olhou para os lados. Ninguém. Mas a voz

tinha dito seu nome. Com clareza. Como se o chamassem de dentro de um sonho

— ou de um pesadelo.

E então os cães apareceram.

Ou o que pareciam ser cães.

Seus olhos não refletiam luz. Eram esferas negras alaranjadas, profundas, como

buracos no tecido da noite. Tinham corpo de animal, mas seus movimentos

eram... errados. Eram rápidos demais. Silenciosos demais. Um deles parou diante

do portão. Encarou Toninho e ele ouviu em sua mente.

— Ainda não é sua hora.

Toninho tropeçou para trás, caiu sentado no asfalto. Quando ergueu o olhar, a

criatura havia sumido. A casa estava apagada novamente. Nem um som. Nem

respiração. Nem grilo.

No dia seguinte, Toninho tirou folga. Disse que estava doente. Trancou-se em casa,

com todas as luzes acesas. Mas o medo não passava. Tinha certeza de que aquele

homem do sobretudo não era apenas um vizinho excêntrico. E os cães não

estavam ali para guardar a casa — estavam ali para guardar o que estava dentro

dela.

Na madrugada seguinte, Toninho não conseguiu resistir. Estacionou a moto um

pouco mais longe e voltou a pé, passos cuidadosos, olhos atentos. Queria

observar. Só observar. Nada de tocar o portão outra vez.

Mas a casa parecia... diferente. Quieta.

Não havia cadeado. O portão estava apenas encostado.

Sentiu um arrepio na espinha. Aquilo não fazia sentido. Ninguém mexia naquele

portão há semanas.

Respirou fundo, deu dois passos à frente, mas parou. Algo no instinto lhe dizia

para não passar dali.

Foi então que percebeu: havia alguém na varanda. O homem do sobretudo.

Sentado numa cadeira de balanço, imóvel, de cabeça baixa.

Toninho não conseguia ver seu rosto. Nem os olhos. Mas sentia o peso daquele

olhar, mesmo de longe.

Quis recuar, mas seus pés não obedeceram de imediato.

E então, como se o homem o tivesse ouvido pensar, ergueu lentamente o rosto.

E sorriu.

Um sorriso sem alegria. Apenas a curva seca de quem sabe mais do que deveria.

Toninho virou-se de súbito, montou na moto e foi embora sem olhar para trás.

Nunca contou aquilo pra ninguém.

Nos dias seguintes, o portão voltou a estar trancado com os dois cadeados. Os

cães voltaram a rondar à noite. A casa seguiu silenciosa durante o dia, como se

nada tivesse acontecido.

Mas Toninho mudou.

Parou de fazer ronda naquela rua.

E, toda vez que passava perto da casa 841 — mesmo de longe — sentia o mesmo

arrepio.

Como se alguém, lá de dentro, ainda estivesse esperando por ele.

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