Esperando o apito final
Tá! eu assumo… vacilei.
Quando fui pra aquela partida de futebol, já sabia que não devia estar ali, no campo do Igarapés. Mas o desejo de jogar foi mais forte que o bom senso.
Mesmo com os olhos atentos ao redor — como quem conhece o terreno e seus perigos — não deixava de me concentrar no jogo. O placar teimava num 0 a 0 irritante.
Quase no fim da partida, enfim, fizemos o gol. Um a zero. Era só o juiz apitar e sairíamos vitoriosos.
Foi quando disparei pela direita e recebi a bola, redonda e limpa, pedindo pra ser cruzada. Corri pela lateral do pequeno campo, pronto pra aquele que, talvez, fosse o último lance. Olhei para a área. Nosso centroavante estava livre. Armei o cruzamento e — Dois estampidos, secos e próximos.
A dor veio primeiro, brutal, queimando o peito. Meus joelhos cederam. Caí. Ainda vi a bola rolando mansa perto de mim, esperando o toque final. Todos gritavam, corriam, sumiam da minha visão turva.
Procurei o juiz com os olhos, só queria o apito. O final do jogo. Mas tudo escureceu.
Quando abri os olhos, estava deitado perto da bandeirinha de escanteio. O peito doía como se ainda ardesse. Tentei me levantar, em vão. O campo estava deserto, mergulhado num breu de fim de domingo. Nenhuma alma viva por perto. Só eu… e minha dor.
Arrastei-me até o alambrado, gemendo. Encostei as costas na grade e fiquei ali, respirando com dificuldade. A única luz vinha das casas próximas, lançando sombras distorcidas sobre o campo vazio.
Então ouvi um som vindo do alto. O bater pesado de asas. Grosseiras demais para um pássaro comum. Encolhi-me instintivamente. Um cheiro estranho, forte, chegou junto com a presença.
Uma sombra se projetou à minha frente. Um homem alto, de corpo robusto, surgiu do escuro. Duas asas negras e lustrosas se abriam em suas costas.
— Espero que esteja satisfeito, rapaz. No fim, conseguiu o que queria.
— Quem é você? Me… me ajuda! — pedi, a voz rouca, embargada.
— A ajuda já não serve mais. O que tinha de ser feito… foi.
Minha cabeça girava. Queria calar, mas as palavras escapavam, como se a boca não me pertencesse.
— Você roubou, agrediu, violentou. Achou que nunca teria troco. Mas foi além. Mexeu com a mulher de outro — digamos — profissional como você. E deu no que deu. Dois tiros no peito. Fim de jogo.
Nesse instante, um morador voltando do trabalho — cobrador de ônibus, desses que chega sempre tarde — ouviu as vozes e olhou pro campo.
O homem de asas virou o rosto em direção a ele. Bastou um olhar. O pobre coitado correu de volta pra dentro de casa, sem olhar pra trás.
— Vamos. Por sua causa, aquele ali me viu. Agora terei que lidar com mais um. Trabalho extra, e eu detesto atrasos.
— Você é… o demônio?
Ele agachou-se até ficar à minha altura. Enfiou o dedo em minha ferida aberta. Eu gritei de dor. Ele sorriu.
— Não busco. Mando buscar. Mas alguns casos, como o seu… e o do vizinho ali — apontou com o queixo — eu mesmo trato. Por gosto.
— Eu… eu não posso andar.
Ele me encarou com olhos frios como pedra. Me empurrou de novo no chão e agarrou meus tornozelos. Suas asas se abriram num estalo seco. Começou a me arrastar, voando baixo, até saímos do chão, passando por cima do alambrado. Em direção à lagoa.
Foi quando o apito soou.
Forte. Cortante. Mas não era o fim do jogo. Era o vigilante noturno, passando de moto pelas ruas do bairro.
Tarde demais... Fim de jogo.
Nota do escritor: “Não reconheceu o anjo de asas negras? Isso pode ser um problema para você. Releia a 7ª sexta-feira. Ainda há tempo… talvez
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