quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A minha... Janis


Foi assim que começou esse amor.

Era uma noite como outra qualquer, fria como outra qualquer e uns amigos me chamaram para sair. Como estava entediado em casa, sem animação para nada, não pensei duas vezes. Peguei um casaco, um cachecol, ajeitei meus cabelos com um pouco de brilhantina, com minhas próprias mãos e os encontrei no portão de casa.

Não imaginava qual seria o plano deles. Os três, eram meus amigos desde o meu início na escola e aos finais de semana sempre me chamavam para sair, raramente aceitava. Dessa vez, falavam em ir assistir alguém cantar num pequeno bar em Austin. Ficava um pouco longe de casa, mas mesmo assim segui com eles.

Já tinha ouvido falar desse bar, lá no porto onde faço alguns bicos com meu tio Wollie. Ele era um soldador de primeira e as vezes conseguia com o supervisor a oportunidade de levar um ajudante, eu. Tinha muitos trabalhadores jovens ou não tão velhos como tio Wollie, que só falavam de bebedeiras e mulheres. Foi com eles, que ouvi pela primeira vez falar do tal bar em Austin. Parece que tinham encontrado uma nova atração, que estava levando muita gente para conhece-la.

Fomos no carro de Toni Hanter. Era um playmonth, azul marinho, um tanto já velho. Cada um contribuiu um pouco para o combustível, estávamos na semana de pagamento, então ninguém reclamou.

Toni nos conduzia tranquilamente enquanto falávamos de garotas, carros ou músicas. Quando alguém mencionava pais, escola ou trabalho, era vaiado pelos demais. A ideia era desligar-se de tudo, seguir firme pela estrada e apenas curtir a noite. Não demorou muito e lá estávamos nós, o quarteto mais animado da noite, chegando em Austin.

Na frente do bar tinha muita movimentação, eram rapazes que chegavam de diversas cidades procurando diversão. As meninas também estavam em grande número, todas sorridentes e fazendo charme aos rapazes. Pude reconhecer entre elas, algumas garotas que conheci na escola. Como mudaram, ou melhor, se desenvolveram.

Fomos entrando e procurando uma mesa. Dizia Toni, que conhecia a garota que cantaria naquela noite. Segundo ele, era uma universitária que mandava muito bem um blues. Naquela época, eu ouvia muito blues no pequeno rádio da oficina de carros onde trabalhava meu irmão. Seu chefe era um cara dos bons. Deixava o pessoal trabalhar o dia todo ao som do rádio. E eu como não tinha nada para fazer, aparecia lá para ouvir também. Quando o chefe estava de bem com a vida, dava para saber pois era o dia que mais se ouvia Elvis Presley, ele até me dava uns trocos por ajudar em algo.

Dentro do bar estava muito movimentado. No pequeno palco, quatro homens tocavam blues e quase ninguém ligava para o que estavam tocando. A atenção toda, era para as garçonetes que andavam de um lado para o outro, carregando bandejas de cervejas e um refrigerante preto. Não sei se era porque estava já há algum tempo sem ninguém, mas para mim, quase todas as garçonetes eram lindas. Então, Toni apareceu com uma delas e começamos a beber umas cervejas para relaxar.

Logo o quarteto saiu do palco, com uma ou outra palma solitária estalando, subindo em seu lugar um apresentador. Era um cara baixinho, com um fino bigode debaixo do nariz e uma roupa, meio esquisita.

- Muito bem rapazes e meninas! Se controlem porque hoje, mais uma vez, temos uma garota daqui, da Universidade do Texas, que irá cantar para vocês. Então vamos recebê-la com muitas palmas.

Sempre as coisas correm ao contrário do que se pede. Ele mal terminou e começaram vaias, apupos e assovios, ninguém respeitava nada. Até que apareceu uma garota magra, de óculos e com uma roupa florida, parecia usar um macacão daqueles de jardineiro. Pareceu-me entrar decidida, vibrante, segura. Parou no meio do pequeno palco, pegou o microfone e disse:

- Agora quem comanda essa bagunça aqui, sou eu.

Nisso a banda que animava o local, começou a tocar uma música e ela soltou uma voz potente que calou a todos.

Tudo parou, nem sequer minha respiração eu escutava. O silêncio parecia eterno, até que os primeiros assovios começaram a aparecer. Era uma voz firme, meio rouca e que encantou a todos.

Eu não conhecia a música, mas não conseguia tirar os olhos daquela garota.

Era sereia que me hipnotizou com o seu cantar.

Fiquei ali colado no palco até ela terminar e descer. E ela desceu justamente por onde eu estava. Estendeu sua mão para que a ajudasse descer e eu, ainda enfeitiçado, com os olhos preso aos dela, senti sua mão macia tocando a minha. Seu corpo se aproximou do meu e pude sentir seu cheiro. Ele pareceu entrar em mim e percorrer por todo meu corpo até chegar ao coração.

Ela olhou-me, já muito próxima e perguntou-me:

- E aí, gostou do show?

Não tive tempo de responder, seus amigos e outras pessoas que estavam por lá a arrastaram para longe de mim, enquanto gritavam seu nome. Ainda tentei me aproximar, empurrando as pessoas, enquanto nossos olhos ainda continuavam ligados. Ela também tentava vir até mim, mas essa foi a primeira e última vez que a vi. Minto.

Algum tempo depois, pude vê-la na folha interna do jornal. Estava famosa e indo para Londres.

Acompanhei-a durante algum tempo e até fui a um de seus shows, mas não consegui aproximar-me ao ponto de vê-la tão perto, quanto aquela noite em Austin.

Um dia, voltando para casa depois de um dia duro de trabalho, encontrei um papel preso a minha porta. Era um pequeno envelope verde água. Olhei o remetente e não havia nada. Antes de entrar e fechar a porta de casa, eu ainda olhei pelas proximidades, mas não havia ninguém que pudesse ter deixado aquele envelope ali.

Sentei-me no velho sofá xadrez e abri o envelope rapidamente.

Estava ali escrito, bem no meio de uma folha branca, dobrada quatro vezes, em uma caligrafia limpa e muito bem definida:

"Desculpe, nunca consegui te agradecer. Obrigado por me ajudar descer do palco". Assinado Janis.

Aproximei lentamente o papel próximo ao meu rosto e pude sentir novamente aquele cheiro bom, era dela, eu sabia. Sai rapidamente ao portão, mas ela não estava ali.

Por mais que eu tentasse, e olhe que tentei mesmo, nunca mais a toquei ou mesmo a vi de perto.

Teve um dia, que soube que ela estaria em uma gravadora e arrisquei para tentar vê-la. Havia uma multidão de fãs com cartazes e também muitos policiais tentando controlar aquela loucura. Percebi que com toda aquela bagunça, mais uma vez não conseguiria sequer vê-la e, resolvi voltar para casa contornando a quadra. Estava andando na contramão das pessoas que corriam para a gravadora, perseguindo vi um carro escuro, que julgavam ser dela. Quando vi se aproximar e entrar no beco ali próximo, um carro azul. Primeiro entrou um carro da polícia, depois o carro azul, seguido por outra viatura. Percebi que era ela. Entraria pelos fundos, com certeza tinham planejado isso para despistar os fãs. Corri para aquele beco e a vi descer do carro, sorrindo e acenando. A chamei pelo primeiro nome e como não me deu bola gritei:  - “Austin”.

Já sobre o batente da porta, pronta para entrar, ela parou voltou-se para mim, que a essa altura já não sabia o que fazer, pois tinham dois policiais vindo em minha direção e perguntou:

- Austin? Recebeu meu bilhete? Por que não me respondeu?

Não tive tempo de responder, os policiais me pegaram e me arrastaram dali, enquanto eu ouvia seus protestos para soltarem-me.

Essa sim foi a última vez que a vi.

Carreguei aquele bilhete comigo, por toda uma vida. Como também sua lembrança.

Casei por duas vezes. A primeira me deixou por ciúme de uma pessoa irreal, imaginária, distante e impossível. Procurava denegri-la com calúnias e ofensas. Não me atingia, eu não acreditava em nada. Nem nela e nem nos irritantes e insistentes tabloides sensacionalistas. A segunda, rendeu-se aos meus recortes e discos, incansavelmente rodados na vitrola e partiu aceitando uma idolatria que ruía com minha vida. Tive seis filhos, dentre as meninas, uma Janis. Tive alguns netos também e no meio dessa conturbada aventura, a vi partir deste mundo pela TV.

Ela se foi de forma muito triste, sozinha e longe de mim.

Mesmo com um vazio no peito, toquei minha vida. Minha companhia era alguns discos, recortes e lembranças.

Hoje estou aqui, sentado neste velho banco próximo ao porto, envelhecido e fraco pelo tempo.

Vejo os navios ganhando vida, com seus jovens trabalhadores cheios de sonho, como um dia fui. Com as mãos muito tremulas, peguei no bolso do meu agasalho, um pequeno papel, levei-o próximo ao nariz e tentei buscar seu cheiro através daquele velho bilhete, recebido há tantos anos. Acho que ainda posso sentir seu perfume. O mesmo cheiro suave, assim como o toque de sua mão, que insisto em sentir entre meus dedos.

Estendo minhas mãos, como se fosse novamente ajudá-la.

Novamente escuto sua voz, agora sem melodia, apenas uma suave e doce voz, cantando bem baixinho em meus ouvidos. Sorrio,

Sei que logo estarei com ela e esse amor durará para sempre...

Saudades, minha Janis.

 



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