sexta-feira, 27 de junho de 2025

Bonus Sexta-feira - Não olhe na lixeira

 


        Não olhe na lixeira  

A rua Paresi era sem saída, ao lado da minha casa, era um problema.

No bairro periférico de Igarapés, onde ficava, as luzes da cidade mal

alcançavam, esgoto encanado quase não tinha. Linha de ônibus só no asfalto e

a uma certa distância dali. Eram só dois por dia, ou melhor, um de dia e outro no

Final da noite.

Essa rua era isolada de tudo e nem o coletor de lixo passava ali. Os moradores,

acostumados ao abandono das autoridades, estranharam a aparição repentina

de uma lixeira grande, na esquina do primeiro terreno na entrada da rua.

O proprietário do terreno, indignado pela ousadia da construção e por não ter

autorizado a instalação, destruiu a lixeira diante de todos, reduzindo-a a

pedaços.

No entanto, ao amanhecer de um novo dia, a lixeira estava lá, intacta, sem

qualquer sinal de dano.

Os vizinhos, incrédulos, especulavam sobre o ocorrido, atribuindo-o a

brincadeiras de mau gosto ou loucura do destruidor dela. Mas a realidade se

mostraria mais sombria.

Os primeiros a desaparecer foram catadores de recicláveis que sempre

recolhiam produtos dos moradores da rua sem saída. Relatos surgiram de que

aqueles que abriam a lixeira e depositavam seu saco de lixo, nada acontecia,

mas os que olhavam em seu interior no horário tarde da noite, eram sugados

para dentro, sumindo sem deixar vestígios.

Um único transeunte, ao passar tarde da noite pela janela de um ônibus,

testemunhou uma sombra sendo engolida pela lixeira.

— Vocês viram isso! — Gritou apontando para o início da rua, fazendo com

que várias pessoas corressem a sua janela.

Apesar de só dois passageiros afirmarem terem visto e reconhecerem por

fotos que a pessoa devorada pela lixeira como um catador conhecido, seus

relatos foram recebidos com descrença e escárnio.

A versão do caso cresceu e chegou até a cidade.

As autoridades locais, céticas, desconsideraram as denúncias, tratando-as

como lendas urbanas ou histórias fantasiosas para chamar a atenção.

Para acalmar os moradores, no final da tarde seguinte, a prefeitura destruiu outra

vez a sinistra lixeira e colocou uma caçamba de recolher entulhos em seu lugar,

mas no dia seguinte a lixeira estava novamente lá e a caçamba havia

desaparecido. E assim ficou por mais uns dias.

Certa noite, um antigo morador conhecido por todos na rua, também

desapareceu. A comunidade, tomada pelo medo, evitava a lixeira e colocaram

cartazes feito a mão com os dizeres:

“Não se aproximem dessa lixeira, perigo de morte!”

Mas a curiosidade humana é uma força poderosa.

Nova destruição ocorreu, nova caçamba colocada no local e uma dupla de

policiais foi colocada em vigia. No dia seguinte os policiais haviam desaparecidos

e a lixeira estava novamente lá.

Pensaram no padre local, talvez uma benção especial resolvesse, porém o

ridículo de benzer uma lixeira deixou a ideia de lado. Antes tivessem tentado.

Houve um novo desaparecimento.

O mistério da lixeira amaldiçoada permaneceu por dias, até que misteriosamente

ela desapareceu.

Alguns dizem que era um portal para outra dimensão; outros acreditam que é

uma manifestação do mal. Mas uma coisa é certa: aqueles que ousaram olhar

em seu interior nunca mais foram vistos.

Se um dia você se deparar com uma lixeira solitária em uma rua deserta,

lembre-se desta história e resista à tentação de espiar seu conteúdo.

A curiosidade pode ser irresistível, mas no bairro Igarapés, ela pode custar sua

vida.

Encerramento - O acerto final

     O acerto final

Estava digitando quando olhei para o relógio do computador: hoje, sexta-feira, 13 de junho de 2025.

23:15 (hora local)

Foi naquela noite antiga, quando aquele homem de olhos fundos, acompanhado de uma neblina, me procurou no portão e que tudo começou.

Disse que queria histórias. Pediu que eu contasse o que sussurravam as sombras daqui. Na hora, achei estranho. Hoje entendo. Não foi um pedido. Foi um acerto.

Treze contos já foram contados. Treze fissuras abertas nos recantos do Igarapés. Mas agora... é a vez dele.

23:30 (hora local)

As luzes começam a piscar. Sinto. Há alguém está atrás de mim.

Devagar, viro a cabeça. É ele. O mesmo homem sinistro. Mas agora vejo detalhes que antes não notei. Me parece familiar.

— Disse pra contar as histórias do Igarapés — sua voz ecoa como se viesse de todos os lugares que escrevi. — Contou direitinho. Cada palavra no lugar certo. Não exatamente o que aconteceu, mas quem vive aqui lembrara de algo ao ler.

Ele caminha pela casa, seus passos como se conhecesse bem minha casa fazem o som de folhas secas. Então pega meus papéis e lendo ri.

— A lagoa agora reflete o que não deveria existir. Pobre velho e sua neta, eu os avisei. Presença em casa, isso sempre teve e a muitos que ainda nem percebem. Uivos, lobo... Não sei disso não... rsrsrs. O bambuzal sussurra nomes de quem ainda não morreu. Esse do lanche foi interessante. Destinado a alguém? — Ele me encara. — Com o vizinho, requer cuidado. O pregador... Belo trabalho.

Sinto um frio que vem de dentro.

— Cada história foi uma chave, não foi? — contínuo, tentando entender. — Você me usou para abrir algo?

— Abrir? — Ele ri, um som que lembra o Seu Valdir, mas distorcido. — Não, meu caro escriba. Para chamar. Cada conto foi um convite a lembrança. Um chamado para que eles viessem. Nem todos esquecem o que aconteceu nesse bairro.

23:45 (hora local)

A casa parece respirar. As paredes gemem. E eu percebo: não são gemidos. São vozes. Todas as vozes dos meus contos, sussurrando juntas.

— Eles estão aqui agora — ele diz, abrindo os braços. — Todos. O homem da lagoa, o passageiro do ônibus, a professorinha, O velho do bambuzal... Treze aberturas, treze presenças. E você... você foi o anfritrião.

Ele estende uma folha em branco.

— Só falta uma coisa. Seu nome. Como autor da passagem. Como aquele que trouxe o Outro Lado para cá.

— E se eu não assinar?

Ele sorri, e reconheço esse sorriso. É o mesmo que imaginei no rosto do pregador, e no espectro no espelho, em todos os personagens sinistros que criei.

— Você vai assinar. Porque não é mais você quem escolhe. Há treze sextas-feiras, você deixou de ser só o autor. — Ele se inclina por sobre minha mesa. — Agora você é apenas... um personagem.

A caneta está na minha mão. Não lembro de tê-la pegado. Meus dedos se movem sozinhos, traçando letras que conheço, mas que parecem vir de outra pessoa.

24:00 (hora local)

Ele olha o relógio sorrindo. As luzes se apagam de vez. Na escuridão, ouço risadas que reconheço: são minhas próprias risadas, vindas dos contos que escrevi.

Minha assinatura está completa no papel.

— Bem-vindo ao Igarapés — ele sussurra. — O verdadeiro Igarapés.

Quando a luz voltou, eu estava do lado de fora. No portão. Esperando.

Agora sou eu quem bate nas casas à meia-noite. Pedindo para as pessoas contarem histórias. Fazendo novos acertos.

O Igarapés sempre precisou de alguém para abrir as portas. E sempre haverá alguém disposto a escrever.

Se você está lendo isso... cuidado com as histórias que conta. Principalmente se forem sobre o bairro Igarapés.


13ª - Sexta-feira - O vizinho

 



          O vizinho


Toninho sempre soube que trabalhar como vigilante no bairro Igarapés

significava ver coisas que os outros não viam. Três da manhã de uma terça-feira

qualquer, ele estava fazendo sua ronda quando viu o caminhão de mudança sair

da chácara do nº 841.

Estranho. A casa estava vazia há anos, desde que o senhor Dinei se mudou para

longe dali. E mudança às três da manhã? Quem se muda de madrugada?

Acompanhou a distância o caminhão da mudança sair do bairro e voltou sua moto

para retornar até casa de onde partiram. Ele chegou a ver o homem que contratara

a mudança. Era alto, magro, usava um sobretudo mesmo no calor de março. Não

falava, apenas apontava onde e o que fazer. Quando terminou, pagou os

carregadores em dinheiro e eles sumiram como se nunca tivessem existido.

Quando retornou na casa tudo estava no escuro, as luzas se apagaram.

Na manhã seguinte, Toninho tentou contar para a vizinhança, mas soou como

conversa de quem trabalha de madrugada e vê coisas que não existem.

Algumas semanas se passaram e nada acontecia durante o dia naquela casa, seu

portão continuava com dois grandes cadeados fechando o portão, como se ainda

estive vazia, porém quando a noite chegava, Toninho ouvia os cachorros

caminhando no quintal. Deviam ser grandes pelo barulho que vaziam.

Durante o dia nunca viram ninguém na casa, lixo colocado pelo lado de fora, ou

qualquer barulho dos cachorros.

Numa outra madrugada, Toninho viu um sedam preto entrar e não o viu sair mais.

Teria algo sobrenatural acontecendo ali? O que esse vizinho faz que ninguém o vê

sair ou chegar? A única coisa que Toninho tinha certeza, era que os dois cães não

eram pets e sim guardiões que só apareciam a noite.

Um dia ele parou sua moto, próximo ao portão, desceu e foi ver o que acontecia

naquela casa a noite e os cães quase derrubaram o portão fazendo-o sair

disparado com sua moto.

Na noite seguinte, curioso e inquieto, Toninho resolveu voltar. Estacionou a moto

mais longe, caminhando até a casa do 841 com o motor desligado, os faróis

apagados. O portão permanecia trancado com eles, dois cadeados, mas os cães

não latiam. Não havia som algum, exceto o canto abafado de um grilo.

Silêncio demais.

Ele se aproximou do portão devagar, até encostar os dedos nas grades frias. Foi

então que ouviu. Um sussurro vindo do fundo do quintal.

— Toninho...

Recuou, o coração batendo no pescoço. Olhou para os lados. Ninguém. Mas a voz

tinha dito seu nome. Com clareza. Como se o chamassem de dentro de um sonho

— ou de um pesadelo.

E então os cães apareceram.

Ou o que pareciam ser cães.

Seus olhos não refletiam luz. Eram esferas negras alaranjadas, profundas, como

buracos no tecido da noite. Tinham corpo de animal, mas seus movimentos

eram... errados. Eram rápidos demais. Silenciosos demais. Um deles parou diante

do portão. Encarou Toninho e ele ouviu em sua mente.

— Ainda não é sua hora.

Toninho tropeçou para trás, caiu sentado no asfalto. Quando ergueu o olhar, a

criatura havia sumido. A casa estava apagada novamente. Nem um som. Nem

respiração. Nem grilo.

No dia seguinte, Toninho tirou folga. Disse que estava doente. Trancou-se em casa,

com todas as luzes acesas. Mas o medo não passava. Tinha certeza de que aquele

homem do sobretudo não era apenas um vizinho excêntrico. E os cães não

estavam ali para guardar a casa — estavam ali para guardar o que estava dentro

dela.

Na madrugada seguinte, Toninho não conseguiu resistir. Estacionou a moto um

pouco mais longe e voltou a pé, passos cuidadosos, olhos atentos. Queria

observar. Só observar. Nada de tocar o portão outra vez.

Mas a casa parecia... diferente. Quieta.

Não havia cadeado. O portão estava apenas encostado.

Sentiu um arrepio na espinha. Aquilo não fazia sentido. Ninguém mexia naquele

portão há semanas.

Respirou fundo, deu dois passos à frente, mas parou. Algo no instinto lhe dizia

para não passar dali.

Foi então que percebeu: havia alguém na varanda. O homem do sobretudo.

Sentado numa cadeira de balanço, imóvel, de cabeça baixa.

Toninho não conseguia ver seu rosto. Nem os olhos. Mas sentia o peso daquele

olhar, mesmo de longe.

Quis recuar, mas seus pés não obedeceram de imediato.

E então, como se o homem o tivesse ouvido pensar, ergueu lentamente o rosto.

E sorriu.

Um sorriso sem alegria. Apenas a curva seca de quem sabe mais do que deveria.

Toninho virou-se de súbito, montou na moto e foi embora sem olhar para trás.

Nunca contou aquilo pra ninguém.

Nos dias seguintes, o portão voltou a estar trancado com os dois cadeados. Os

cães voltaram a rondar à noite. A casa seguiu silenciosa durante o dia, como se

nada tivesse acontecido.

Mas Toninho mudou.

Parou de fazer ronda naquela rua.

E, toda vez que passava perto da casa 841 — mesmo de longe — sentia o mesmo

arrepio.

Como se alguém, lá de dentro, ainda estivesse esperando por ele.

12º Sexta-feira - O pregador e o poço


        O pregador e o poço


Todo mundo, aqui no Igarapés, lembra do Pregador da Esquina.

Um sujeito esquisito, magro, de olhar tão fundo que parecia enxergar o que

ninguém mais via. Ele aparecia todo domingo, bem ali, na esquina do campo.

Ficava de pé, segurando aquele livro velho, com capa rasgada, folhas amareladas

e cheias de rabiscos.

Não era bem uma Bíblia. Era... sei lá. Um livro de avisos. De alertas.

Ele não falava de Deus, nem de céu. Ele falava do mal que crescia ali. E sempre

começava do mesmo jeito, abrindo o livro e lendo em voz alta:

— “O poço está aberto. Fujam dele.”

Eu não sei se, na época, alguém levava isso a sério. Uns riam. Outros

atravessavam pra calçada oposta. Mas quem parava pra ouvir... saía de lá meio

estranho, olhando pros lados, meio desconfiado.

Ele falava que o bairro comprometido. Que tinha uma coisa aqui. Uma coisa

antiga. Um mal que se escondia nas sombras, na água da lagoa, nos meio dos

bambuzais, na fria neblina do outono,... e principalmente... naquele poço velho

nos fundos da casa dele, na Rua Tupari.

— “Foi dali que começou. E dali não deveria ter saído...” — dizia, apontando pro

chão, com o dedo torto e sujo.

E não era só papo não. Ele citava sua casa nº666 na Rua Tupari — aquela dos

barulhos, das panelas voando. Falava do bar que fechou depois de recusar uma

pinga a um estranho. E até do dia em que um andarilho apareceu vindo da rodovia

Dutra, falando que o fim do mundo começava... aqui.

Só que, de uma hora pra outra, o Pregador sumiu. Simples assim.

A porta da casa dele ficou aberta. As luzes apagadas. O poço no fundo do

quintal... trancado com uma tampa velha e rachada.

E foi aí que começaram os gritos.

Quem mora por ali, jura que ouviu — e eu também ouvi —, bem no meio da

madrugada, aquela voz rouca, sufocada, saindo do poço:

— “ME TIREM DAQUI! PELO AMOR DE DEUS, ME TIREM DO POÇO!”

Sabe aquele tipo de coisa que você quer muito acreditar que é sua cabeça

pregando peça? Pois é. Mas não era. Vizinhos foram lá, iluminaram o poço,

jogaram corda... nada. Os bombeiros foram chamados e nada.

Só eco. Só vazio. Só aquele cheiro estranho de terra molhada misturado com...

não sei dizer... ferrugem talvez... ou coisa podre.

Foram três noites assim. Grito. Silêncio. Grito. Silêncio. Até que... acabou.

No domingo, quem passou na esquina do campo achou o livro.

Aquele mesmo. A capa toda encharcada, aberta bem na primeira página.

E lá estava, escrito em letras tortas, meio tremidas:

“Estou no Poço das Almas. Cuidem do que vive nesse bairro. Não olhem para

trás.”

Desde então... Bom... Se você mora aqui, sabe.

Sabe que a casa 666 nunca mais teve quem se atrevesse a morar. Que no campo,

na Rua Maia... bem... melhor nem falar. E que a lagoa... ficou mais escura.

E, de vez em quando... quando o vento bate mais forte... se escuta, vindo lá da

esquina:

— “O mal mora aqui...”

E se você tiver juízo... não olha pra trás.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Um dia com Ele

 


Depois de uma conversa com um amigo, uma pergunta ficou martelando na minha cabeça:

— Com quem você passaria um dia, se pudesse escolher qualquer pessoa?

Respondi sem pensar, mas algo naquela pergunta grudou em mim. Fiquei imaginando... e talvez fosse assim:

Simplesmente abri os olhos. E Ele estava ali. Na minha frente.

Como reconhecê-Lo se nunca O vi?

— Olá. Tudo bem com você? — disse Ele com a voz mais serena que já ouvi.

— Sim... — respondi, meio zonzo — Onde estou? Quem é você?

— Você queria passar um dia comigo — disse abrindo os braços com um sorriso calmo.

— Aqui estou.

Olhei ao redor. Estávamos sentados em bancos macios, no meio de um imenso campo gramado, salpicado de pequenas flores amarelas e brancas. O lugar transbordava paz.

— Você escolheu esse cenário. Acredito que, no fundo da sua mente, era o que desejava para este momento.

— É lindo... — murmurei, encantado.

— Você tem um gosto maravilhoso. Também adoro lugares assim, onde reina a calma.

— Você é Ele? Digo, o Senhor?

— Sim, sou — respondeu, com um leve sorriso.

Tudo ali parecia retirado de um sonho. O céu começava a se tingir de laranja com o nascer do sol. Animais pastavam ao longe, com uma leveza inacreditável, contornando as flores como se respeitassem a beleza delas.

— Eu... morri? — perguntei, surpreendentemente tranquilo.

— Não, meu amigo. Você apenas desejou estar aqui. E Eu vim ao seu encontro.

— É... eu desejei muito. Só nunca imaginei que seria possível.

— E como você está? Apesar de tudo isso estar acontecendo agora?

Virei para olhá-Lo de frente. E então percebi algo estranho: eu O via com nitidez, mas não conseguia descrevê-Lo. Era como se minha mente não soubesse processar o que via. Não havia cor, idade, raça ou traço específico. Mas eu sabia, com todo o meu ser, que era Ele.

— Não se preocupe com isso — disse, lendo meus pensamentos. — Apenas relaxe.

Ele riu levemente, e percebi que estava se divertindo com minha tentativa frustrada de descrevê-Lo.

— Acho que estou bem. Mas, sinceramente, não sei o que dizer. O que perguntar. É tudo tão... surreal.

— Tudo bem. Fique à vontade. Podemos apenas conversar, se quiser.

— Esse lugar... é lindo demais. — Foi só o que consegui dizer.

— E você ainda não viu tudo. Olhe para a esquerda. Sei que você gosta de lagos.

E, como se um pintor começasse a desenhar diante de mim, surgiu um pequeno lago de águas cristalinas. Era mágico.

— Vamos pescar?

Antes que eu respondesse, já estávamos à beira do lago, cada um com uma vara de pesca na mão.

— Também gosto de pescar. Costumavam me chamar de pescador de homens. Sou bom nisso — disse Ele, com um sorriso brincalhão.

Olhei surpreso e, antes que pudesse responder, Ele apontou:

— Acho que você pegou um.

Puxei a linha com entusiasmo e vi o peixe deslizar na água, relutante. Sorri. Adoro pescar. Ele sabia.

Conversamos sobre tudo. O lago, o céu, os cachorros que eu amava, os trovões que eu não suportava. Falamos sobre o espaço, o mar, a vida. Nada de perguntas profundas. Apenas conversa. Natural, leve.

Em algum momento, confessei que nunca teria coragem de andar sobre as águas — só de pensar, me dava arrepios. Ele riu, aquele riso gostoso, longo.

Ele também fisgou um peixe. Quando olhei o cesto ao lado Dele, estava cheio.

— Ei, isso não é justo! Você multiplicou seus peixes!

Caímos na risada. Rimos até as lágrimas escorrerem. Foi um dia perfeito.

O tempo passou devagar. E, quando percebi, já era hora de ir.

Abracei-O com força. Agradeci, com o coração transbordando. E foi então que percebi: não fiz nenhuma daquelas perguntas importantes que eu sempre quis. Nenhuma. E não senti falta.

Ele colocou a mão no meu rosto, depois em meus ombros, e disse:

— Nada é mais importante que você. Siga seu caminho com amor e simplicidade.

Ajude, se puder. E, se não puder, pense com fé: tudo ficará bem. E ficará.

Uma lágrima escorreu. Ele me abraçou mais uma vez. E eu só consegui dizer:

— Eu te amo.

Abri os olhos.

Minha família estava reunida ao meu redor, cantando parabéns. Era meu aniversário.

Obrigado pelo presente.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

11ª Sexta-feira - Senha 23

 

                                Senha 23



Quando se está no postinho do Igarapés, o tempo não passa. Os ponteiros do
relógio relutavam em mexer-se. A manhã parecia não querer terminar.
Como sempre estava lotado, todos os assentos tomados e aquela senhora
encostada na parede da sala de espera observava tudo com sua senha na mão.
ID23. Revezava seu olhar entre o papel em sua inquieta mão e o painel eletrônico
que mostrava números diversos, como regendo quem deveria ser atendido ou não.
— Quatorze. — anunciava a voz metálica, ecoando pela sala.
A mulher girava o papel na mão, os dedos trêmulos, e prendia o fôlego. Quando
percebia que não era sua vez, soltava um suspiro que misturava frustração e
tristeza. Isso se repetia a cada chamada.
— Dezenove.
— Vinte.
Um a um, os rostos iam sumindo da sala. Até que, restando poucos, ela parecia
ganhar mais contornos. Antes quase invisível, agora era impossível não a notar —
pálida, imóvel, olhando fixamente para o painel, como se sua vida dependesse
dele.
A atendente, já acostumada a lidar com atrasos, erros no sistema e reclamações,
percebeu algo estranho. Havia uma senha a mais ali. Conferiu a lista. Conferiu os
papéis. Conferiu os rostos.
Não batia.
Levantou-se, olhou em volta e percebeu que... ela não estava mais ali.
— Estranho... Tinha uma senhora ali — sussurrou, franzindo a testa e apontando
para o fundo da sala.
Todos voltaram suas cabeças para o local apontado, dizendo não ter visto. Voltou
para a mesa. Mal se sentou, a voz de um homem que aguardava chamou sua
atenção:
— Moça... acho que ela já entrou na sala do doutor. A porta está fechada.
A atendente olhou imediatamente para a porta do consultório. Estava fechada,
como sempre, sinal de que o médico estava atendendo.
Olhou pra o painel e nele registrava ainda o número anterior chamado.
Curiosa — e, de certa forma, aliviada por resolver aquele pequeno mistério —
levantou-se e foi até lá. Bateu na porta, ouviu um “entra” meio abafado e girou a
maçaneta.
O consultório estava... vazio.
Só o doutor, organizando alguns papéis.
— Ué... a paciente que entrou agora, cadê?
Ele levantou o olhar, confuso:
— Saiu... há pouco. Pedi para esperar um minuto, quando vi já havia saído e
fechado a porta. Acho eu.
— Como assim? Eu... não vi ninguém sair... — disse, olhando em volta, sentindo o
frio subir pela espinha.
O médico franziu a testa, cruzou os braços e ficou olhando fixamente para ela.
— Ela... estava segurando uma senha, né? — perguntou baixinho, quase
sussurrando.
— Não sei.
O médico respirou fundo, se encostou na cadeira e, depois de alguns segundos,
revelou:
— Disse que era a próxima, número 23.
— Doutor, só atendemos 22 pessoas por dia
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som do visor eletrônico
piscando mais um número e anunciando pela voz eletrônica.
— Vinte e três.
Ambos olharam assustados ao ver a cadeira mover sozinha e uma sombra se
mexeu, como se alguém estivesse se levantando dela.
O doutor e a atendente saíram imediatamente da sala enquanto ouviam uma leve
risada ficando pra trás.
A atendimento encerrado.




Pré-venda da antologia Caronte

              Tá, eu sei que já viu no whatsapp, Instagram, Facebook e em tudo quanto é lugar, mas eu tinha que fazer propaganda aqui também, né. Paciência.

              A ideia de participar da seletiva dessa antologia do Editorial Medusa, nome sugestivo, surgiu depois que alguns amigos leitores das minhas sandices, dar bom retorno sobre a série Contos do Igarapés. Não tem nada de medonho, a série só tem um conto sinistro aqui, um sobrenatural ali, nada de assustar ou tirar o sono.

              O tema da seletiva também ajudou muito, "Caronte", gosto dessa linha, apesar de não escrever muito sobre. Aos que não sabem, Caronte é o barqueiro das almas, que por moedas conduz os mortos ao pelo rio Estige até seu destino final. Só isso já arrepia. 

              Para quem gosta da temática ou leu alguns dos Contos do Igarapés, é um ótimo livro. Com certeza irá gostar e se comprar nessa pré-venda, ainda ganha brindes.

              Está vendo, nem doeu. Bora lá!


                                                                      Antologia Caronte


sábado, 7 de junho de 2025

Conto selecionado!!!


              Viagem ao além

Depois de um bom tempo sem participar de concursos ou seleção para antologias, resolvi em março que participaria esse ano.

Analisei alguns e um me chamou a atenção. Editorial Medusa, seletiva de contos com o tema: Antologia Caronte. 

Esse era o desafio.

"Caronte é conhecido como o barqueiro das almas, aquele que conduz os mortos pelo rio Estige até seu destino final. Mas será que essa travessia precisa ser sempre de barco? E se, em diferentes tempos e culturas, o transporte para o outro lado assume novas formas? Nesta antologia, a travessia pode ocorrer de inúmeras maneiras. Um trem fantasma cruzando um deserto infinito, um metrô sem paradas levando passageiros a um destino desconhecido, um táxi que só aceita aqueles que já vieram deste mundo. De acordo com o ambiente e a tradição de cada história, uma viagem pode se dar por diferentes meios: antigos ou modernos, místicos ou tecnológicos, reais ou metafísicos. Caronte não é apenas o velho barqueiro com sua moeda e seu remo –ele pode ser o motorista de um ônibus que nunca chega ao fim da linha. Seja no folclore, na mitologia ou na urbanidade contemporânea, atravessia será o ponto central".

E não é que deu certo!!

Meu conto "Viagem ao além" foi selecionado e participará da antologia. Assim que permitido e contrato assinado, vou públicá-lo.


10ª Sexta-feira - Esperando o apito final

      Esperando o apito final 


Tá! eu assumo… vacilei.

Quando fui pra aquela partida de futebol, já sabia que não devia estar ali, no campo do Igarapés. Mas o desejo de jogar foi mais forte que o bom senso.

Mesmo com os olhos atentos ao redor — como quem conhece o terreno e seus perigos — não deixava de me concentrar no jogo. O placar teimava num 0 a 0 irritante.

Quase no fim da partida, enfim, fizemos o gol. Um a zero. Era só o juiz apitar e sairíamos vitoriosos.

Foi quando disparei pela direita e recebi a bola, redonda e limpa, pedindo pra ser cruzada. Corri pela lateral do pequeno campo, pronto pra aquele que, talvez, fosse o último lance. Olhei para a área. Nosso centroavante estava livre. Armei o cruzamento e — Dois estampidos, secos e próximos.

A dor veio primeiro, brutal, queimando o peito. Meus joelhos cederam. Caí. Ainda vi a bola rolando mansa perto de mim, esperando o toque final. Todos gritavam, corriam, sumiam da minha visão turva.

Procurei o juiz com os olhos, só queria o apito. O final do jogo. Mas tudo escureceu.

Quando abri os olhos, estava deitado perto da bandeirinha de escanteio. O peito doía como se ainda ardesse. Tentei me levantar, em vão. O campo estava deserto, mergulhado num breu de fim de domingo. Nenhuma alma viva por perto. Só eu… e minha dor.

Arrastei-me até o alambrado, gemendo. Encostei as costas na grade e fiquei ali, respirando com dificuldade. A única luz vinha das casas próximas, lançando sombras distorcidas sobre o campo vazio.

Então ouvi um som vindo do alto. O bater pesado de asas. Grosseiras demais para um pássaro comum. Encolhi-me instintivamente. Um cheiro estranho, forte, chegou junto com a presença.

Uma sombra se projetou à minha frente. Um homem alto, de corpo robusto, surgiu do escuro. Duas asas negras e lustrosas se abriam em suas costas.

— Espero que esteja satisfeito, rapaz. No fim, conseguiu o que queria.

— Quem é você? Me… me ajuda! — pedi, a voz rouca, embargada.

— A ajuda já não serve mais. O que tinha de ser feito… foi.

Minha cabeça girava. Queria calar, mas as palavras escapavam, como se a boca não me pertencesse.

— Você roubou, agrediu, violentou. Achou que nunca teria troco. Mas foi além. Mexeu com a mulher de outro — digamos — profissional como você. E deu no que deu. Dois tiros no peito. Fim de jogo.

Nesse instante, um morador voltando do trabalho — cobrador de ônibus, desses que chega sempre tarde — ouviu as vozes e olhou pro campo.

O homem de asas virou o rosto em direção a ele. Bastou um olhar. O pobre coitado correu de volta pra dentro de casa, sem olhar pra trás.

— Vamos. Por sua causa, aquele ali me viu. Agora terei que lidar com mais um. Trabalho extra, e eu detesto atrasos.

— Você é… o demônio?

Ele agachou-se até ficar à minha altura. Enfiou o dedo em minha ferida aberta. Eu gritei de dor. Ele sorriu.

— Não busco. Mando buscar. Mas alguns casos, como o seu… e o do vizinho ali — apontou com o queixo — eu mesmo trato. Por gosto.

— Eu… eu não posso andar.

Ele me encarou com olhos frios como pedra. Me empurrou de novo no chão e agarrou meus tornozelos. Suas asas se abriram num estalo seco. Começou a me arrastar, voando baixo, até saímos do chão, passando por cima do alambrado. Em direção à lagoa.

Foi quando o apito soou.

Forte. Cortante. Mas não era o fim do jogo. Era o vigilante noturno, passando de moto pelas ruas do bairro.

Tarde demais... Fim de jogo.

Nota do escritor: “Não reconheceu o anjo de asas negras? Isso pode ser um problema para você. Releia a 7ª sexta-feira. Ainda há tempo… talvez

9ª Sexta-feira - A última aula

 


               A última aula



A escola estadual ficava no fim de uma rua sem saída, cercada por árvores

antigas que lançavam sombras compridas nas manhãs cinzentas. Era um prédio

antigo, de janelas estreitas e silêncio grosso. Poucos ousavam passar por lá à

noite. Diziam que, depois que o último aluno saía, algo ali continuava acordado.

Márcio era o zelador e caseiro da escola havia alguns anos. Já tinha sido aluno por

ali — um dos bons, segundo diziam. Na juventude, como muitos outros garotos,

era encantado pela professora Solange. Linda, doce e com uma voz calma que

parecia acalmar até as paredes da escola. Tinha o hábito de agradecer o dia com

um beijo na face dela, e relutava em ir embora. Assim como tantos outros, ficava

só para se despedir.

Solange era mais que uma professora. Era a alma da escola. Organizou

campanhas para arrecadar alimentos, roupas, livros. Tinha um carinho especial

pelos alunos mais esquecidos pela sorte — entre eles, Márcio. Quando ele pediu

ajuda para um teste de emprego, ela não apenas aceitou, como se comprometeu

a escrever uma carta de recomendação.

Naquela semana, Solange passou a dar aulas extras só para ele. Dizia que ele

tinha um futuro bonito, que bastava querer. Na última noite de reforço, ela lhe

disse que o dia seguinte traria uma aula especial, a última antes de teste que faria

para o emprego. Márcio foi para casa leve, esperançoso, como quem carrega um

segredo bom.

Mas naquela madrugada, tudo escureceu. Solange morreu subitamente, vítima de

um infarto fulminante. Márcio não suportou. Sentiu-se traído pela vida, pela sorte,

por Deus. Largou os estudos, os sonhos, e se lançou no mundo de erros que

sempre evitara.

Anos se passaram. O menino promissor deu lugar a um homem endurecido, de

olhos fundos e palavras curtas. A única oportunidade que apareceu foi a de

trabalhar como caseiro na mesma escola que agora evitava olhar de frente.

Aceitou. Não por vontade, mas por necessidade.

Naquela noite, havia algo no ar. Um vento mais frio, um silêncio mais pesado.

Tomou um gole de cachaça e saiu para apagar as luzes do pátio. Tudo estava em

ordem. As salas escuras, os banheiros vazios, a secretaria em silêncio. Quando já

ia se recolher, notou uma luz acesa no segundo andar. Era a antiga sala onde

estudava.

Com a visão meio turva, pensou estar vendo coisas. Mas então, um vulto passou

diante da janela e acenou.

— Molecada abusada... — resmungou, largando a garrafa no chão.

Subiu as escadas com pressa, pronto para dar uma bronca. Mas ao abrir a porta

da sala, encontrou o espaço vazio. Apenas o silêncio — e uma frase no quadronegro:

"Só perde a razão quem a tem."

A frase que Solange escrevia toda aula de reforço. Seu coração disparou. Passou

os olhos pela sala. Nada. Só o som de sua própria respiração. Caminhou até o

quadro e pegou o apagador, já trêmulo.

Quando ia tocar a primeira letra, uma voz ecoou do fundo da sala:

— É assim que se perde a razão.

O apagador caiu de sua mão. Ele virou-se num salto — e ali estava ela.

Solange. Intacta. Os mesmos olhos serenos, o mesmo vestido azul, o mesmo

gesto com as mãos. Mas com uma luz estranha ao redor, como se não

pertencesse mais a esse mundo.

— Márcio... — disse ela, com doçura. — Não estou feliz com as escolhas que fez.

Mas ainda há tempo. Sente-se na sua carteira. Temos uma última aula para

terminar.

Ele, como um menino assombrado, obedeceu. Sentou-se na primeira carteira da

fila, olhos marejados, mãos trêmulas. A aula começou. Mas do que foi dito ali, ele

jamais contou a ninguém. Nem mesmo para a esposa.

No dia seguinte, largou a cachaça, procurou um curso e voltou a estudar. Dizem

que falava sozinho nas madrugadas, chamando alguém de “professorinha”. A

esposa jura que ouviu.

Hoje, Márcio é um empresário respeitado no bairro Igarapés. Mora numa casa de

frente para o antigo campo, atrás da escola. E em algumas noites, ao olhar pela

janela, vê a luz acesa na sala do segundo andar — a antiga sala de aula. Ele sorri.

Não por medo, mas por gratidão.

Afinal, nunca é tarde para a última aula

8ª Sexta-feira - Seu Valdir


                                             Seu Valdir


Ninguém no bairro do Igarapés sabia muito sobre o passado do velho seu Valdir.

Sabiam apenas que era sorridente, calado, e vivia sozinho num sítio no fim da rua

de barro, ali perto da caixa d’água do bairro.

Todo dia era a mesma coisa: bem cedo, ele surgia no pasto com o chapéu de

palha e um balde na mão, indo cuidar das vacas e das galinhas. Às vezes parava,

limpava o suor da testa com o braço e acenava para quem passava pela estrada

de chão. Sempre com aquele sorriso largo e os olhos semicerrados pelo sol.

Não falava muito, mas respondia aos gritos com um gesto, uma piscadinha ou

aquele riso mudo, quase infantil. As crianças, ao voltarem da escola, já sabiam:

havia sempre um cesto de frutas frescas na porteira do sítio. Enchiam as

mochilas, riam alto e gritavam um “obrigado!” para o velho, que as observava da

varanda, balançando na cadeira de taquara.

Todo sábado, seu Valdir descia até o mercadinho da Lagoa. Comprava alguns

mantimentos e voltava devagar, sacolas plásticas nas mãos, passos arrastados,

olhar sereno.

Foi só na segunda semana de abril que o silêncio começou a incomodar.

Chamavam por ele da porteira. E nada. Ele até olhava, parava o que estava

fazendo, virava o rosto devagar demais. Depois voltava às tarefas, mas sem o

sorriso.

— Estranho, não é? — comentou seu Geraldo com a filha. — Deve tá doente… ou

emburrado com alguém.

Mas ninguém via ninguém entrando ou saindo daquele sítio além dele mesmo.

Na quinta-feira à noite, feriado do Dia do Trabalhador, foi o Tião Moreno quem se

preocupou de verdade. Um cheiro ruim se espalhava pelo ar. Achou que algum

bicho tivesse morrido. Lembrou que, na noite anterior, vira o velho Valdir andando

pelo terreiro com uma lamparina acesa, falando sozinho, como se procurasse algo

no pasto.

Na sexta, resolveu ir até lá com a desculpa de querer comprar uns legumes.

Chamou do portão, bateu palma, gritou:

— Ô, seu Valdir! O senhor tá aí?

Nada.

Empurrou a porteira, que rangeu devagar. A trilha de terra batida ainda estava

úmida, como se alguém tivesse passado por ali há pouco. O silêncio parecia

escutar.

Na varanda, a cadeira de balanço oscilava sozinha, como se alguém acabasse de

se levantar. A porta da casa estava entreaberta.

— Seu Valdir…?

Entrou devagar. A casa cheirava a coisa velha, poeira e abandono. Os pratos sujos

na pia. No fogão, uma panela de arroz embolorado. Um prato com restos de

comida coberto de formigas sobre a mesa.

Nenhum sinal dele.

O estômago de Tião embrulhou. Saiu dali apressado e foi direto chamar a polícia.

Chegaram ao fim da tarde, quase noite. Dois soldados, uma viatura, e um silêncio

pesado. Vasculharam a casa, o terreiro, os arredores. Encontraram os animais

soltos, alguns magros, outros mortos no chiqueiro.

E sob um pé de manga, no canto do pasto, encontraram o corpo.

Seu Valdir. Inchado. Roxo. Coberto de moscas.

O legista foi direto: fazia pelo menos duas semanas que estava morto.

Mas aquilo não fazia o menor sentido.

— Como assim, duas semanas? — espantou-se dona Vilma. — Eu vi ele

anteontem indo tirar leite das vaquinhas! Chamei, ele se virou na minha direção…

mas não respondeu.

— Comigo foi igual — disse seu Alfredo. — Uns dias atrás, vi ele levando o cesto de

frutas. Mas meu menino falou que não tinha nada na porteira.

— Ele me olhou… — murmurou Tião, pálido. — Me olhou sem sorrir. E nem

acenou…

A polícia refez as rotas, conversou com os vizinhos, analisou imagens do

mercadinho. Nada de anormal.

Até que Carlão mostrou um vídeo gravado no celular três dias antes da descoberta

do corpo. Ele filmava um bando de pássaros que sobrevoava o sítio,

estranhamente inquietos.

No fundo da imagem, seu Valdir aparece saindo do mato. Passos arrastados.

Cabeça baixa. O rosto oculto pela sombra.

De repente, ele para. E vira-se devagar, direto para a câmera. Olhos sem brilho.

Sérios. Sem piscar.

Desde então, moradores juram ver um homem velho parado no pasto quando a

noite cai. Segurando um lampião. Olhando em silêncio.

Sem sorrir.

6ª Sexta-feira - Vai abrir o portão?

 

          Vai abrir o portão?


Você não precisa acreditar, mas foi assim... ou será.

Quando Sula disse que tinha visto algo no portão, ninguém levou a sério. Mas

eu, que sou curioso, fui lá conferir.

Tudo começou com um bater de palmas, a Melami — sua cachorrinha — latindo

sem parar, e um grito vindo da cozinha:

— Alguém vai ver quem é?!

Já era bem tarde, as crianças dormiam, e como o marido ainda não tinha

chegado, ela largou as panelas, enxugou as mãos no avental e, resmungando

consigo mesma, foi até o portão.

De cara, notou algo estranho. Não pelas palmas — volta e meia aparecia algum

cliente atrás de um lanche mesmo de madrugada. Mas sim por causa da luz

vermelha que se espalhava por debaixo do portão. Era um brilho trêmulo, meio

esquisito.

Sem pensar muito, abriu o portão.

Na sua frente estava um homem grande, forte, com presença difícil de ignorar.

— Boa noite — disse ele. — Vim buscar o que é meu.

— Meu marido já saiu com todos os pedidos... o seu deve estar chegando.

— Eu só quero o que é meu.

Foi então que ela percebeu que o rosto dele começava a se distorcer, e aquela

luz vermelha subia em volta do corpo do homem. Num reflexo, ela empurrou o

portão de volta passou o trinco e se encostou nele com força, como se o corpo

fosse tranca.

— Você não precisa me deixar entrar. Só quero o que é meu.

— Valei-me, minha protetora... aqui você não entra!

Uma risada fria ecoou, como se ele estivesse bem do lado dela. Ela começou a

chorar, a gritar, segurando o portão com toda a força.

Uma... duas... três batidas — cada uma mais forte que a outra.

— Só quero o que é meu!

— Vai-te embora! Suma daqui!

Mais três batidas. Agora mais suaves.

— Amor, abre o portão pra mim. Sou eu.

Ela se assustou. Era a voz do marido. Ou parecia ser.

Chamou pelo nome. Ele respondeu. Perguntou quem estava com ele.

— Abra, mulher. Sou eu! Tô sozinho, ué. Que maluquice é essa?

Ela se afastou um pouco, olhou pela fresta. Era o marido, sim, sobre a moto. Mão

já no trinco... mas então se deu conta: não tinha ouvido o barulho da moto

chegando.

— Você não me engana. Vai-te embora, bicho ruim!

— Mulher, tu bebeu foi? Abre esse portão!

Era o jeito dele. A mochila de entregas nas costas, o capacete. Parecia mesmo o

marido. Ela abriu devagar.

Assim que ele tirou o capacete, ela se jogou nos braços dele, chorando.

Contou tudo. Achou que ele fosse rir, mas não.

— Assim que saí da nossa rua — ele disse — encontrei o Luiz ali perto da lagoa.

Ele me pediu um cigarro. Falei que tava atrasado, mas parei e dei. Aí brinquei,

dizendo: “Se eu atrasar de novo hoje, até o coisa ruim vai vir buscar o lanche em

casa!”

Os dois se entreolharam, abraçados, e correram pra dentro. Quando já dentro de

casa escutaram as palmas novamente.

E você sairia?

Iria abrir o portão?

Eles mudaram-se do bairro na mesma semana, mas...

É como sempre digo: Uma vez morando no Igarapés, cuidado com as palavras.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Caminhando eu vou...

Outro dia, conheci um pastor incrível.

Rir sempre foi meu remédio. Para dores da alma, da mente, do coração. Para mim, funciona.
Estava atravessando uma fase difícil — daquelas que dilaceram devagar, dia após dia, sugando nossas forças. Mas resisti. Sou mais teimoso que a vida.

Aprendi que nem sempre é preciso bater de frente com o que nos fere.
Mas também não adianta fingir que não dói. O descaso só alimenta o que queríamos ignorar.
Não, não me converti. Não comecei a frequentar igreja. Mas renasci.
Redobrei minha fé. Fortaleci meu espírito.

Este não é um texto religioso, nem um testemunho ensaiado para convencer alguém. É só verdade.
Somos como livros. Alguns longos, cheios de páginas, com histórias que se estendem por uma vida.
Outros são como esse texto: curtos, mas ainda assim cheios de sentido.

Depois da tempestade, a página virou. E o que encontrei ali poderia fazer qualquer um feliz.
Mas como tudo na vida, também essa página passou.
Virei por vontade própria. O que estava escrito nela já não sustentava a minha felicidade por completo.
Vieram alguns dissabores, sim, mas eram suportáveis.

Cansado, quase cedi à negatividade.
Então, decidi assistir a um culto online. Talvez só para tentar ver alguém que amo e que poderia aparecer na transmissão. E ele apareceu.
Mas, curiosamente, não foi ele que mais me tocou.

O pastor que abriu o culto me chamou atenção de imediato.
Tinha algo familiar. Seu jeito de falar, os trejeitos — lembrou-me Fabiano Cambota, aquele comediante de quem gosto tanto.
E então ele começou a saudar os visitantes, tanto os que estavam no templo quanto os que assistiam de casa.

Foi aí que tudo mudou.

Ele puxou uma canção animada e convidou todos a cantar junto.
A plateia respondeu com alegria.
E eu, do outro lado da tela, fui contagiado.

Não foi só a música, nem a simpatia do pastor — foi a energia boa, sincera, quase palpável, que ele transmitia.
Me fez sorrir de verdade. Me fez lembrar que, sim, é possível recomeçar com leveza.

Esse pastor é único. Natural. Verdadeiro.
E espero, de coração, que ele siga firme no caminho que escolheu trilhar. Admirável.

Minha religião?
Deus.
Simples assim.

“Caminhando eu vou, pra Canaã... Caminhando eu vou, pra Canaã...”


sexta-feira, 25 de abril de 2025

7ª Sexta-feira - Este ônibus vai para onde?



   Esse ônibus vai para onde?


Mudei de bairro há dois anos. A fama sombria do Igarapés — com seus

“casos não explicados” cochichados entre vizinhos — foi o suficiente para me

convencer a ir embora. Mas...

Na empresa, virei piada. Tudo por ter contado duas situações que presenciei por

lá. A primeira foi no campo de futebol: um anjo de asas negras, parado, olhando

para o chão como se conversasse com alguém caído. Quando percebeu minha

presença... simplesmente sumiu. Eu sei — parece absurdo. Às vezes até duvido

de mim mesmo. Mas eu vi.

A segunda aconteceu na academia pública ao lado do campo. Estava vazia, mas

os aparelhos se moviam, como se invisíveis atletas estivessem malhando ali.

Na época, eu trabalhava como cobrador de ônibus e fazia apenas as duas últimas

viagens. Um colega me deixava na Dutra e, de lá, eu caminhava sozinho, pela

madrugada, até em casa. Como dizia uma tia minha: “Quer ver coisa estranha?

Caminha de madrugada pelo Igarapés.” E eu caminhava.

Agora moro do outro lado da cidade. Mas vi o anjo novamente. Duas vezes. Sem

asas.

Estava encostado em um poste, do outro lado da rua, quando cheguei do

trabalho. Braços cruzados. Olhar fixo em mim. Às vezes, murmurava, como se

houvesse alguém invisível ao seu lado.

Comentei com um amigo do antigo bairro. Ele confirmou: “Já viram ele no campo.

Dizem que cuida da alma de um rapaz assassinado lá.”

Não quis saber mais. Nem detalhes. Preferi trocar de turno e passei a trabalhar

nas primeiras viagens do dia. Achei que seria mais tranquilo.

E estava sendo.

Uma semana depois, já mais leve e até rindo com os passageiros, voltávamos

para o Igarapés quando um homem de capote e boné fez sinal. O motorista

parou. Ele subiu lentamente, os passos ressoando vazios no corredor. Veio em

direção à catraca.

Conversava com uma senhora quando ouvi a voz. Grave. Arrastada.

— Esse ônibus vai para onde?

Virei o rosto.

Gelei.

As palavras se esconderam no fundo da garganta. O ar me faltou.

Era ele. O anjo de asas negras. Agora, sem elas.

Ficou ali, sério, me encarando.

— Ele vai para o Igarapés? — repetiu.

O mundo emudeceu. Não consegui responder. O peito apertou. A visão

escureceu. Fechei os olhos e senti alguém me sacudindo.

— Filho, você está bem?

Abri os olhos.

Era a senhora, abanando-me com uma velha pasta de documentos.

Olhei em volta, desnorteado. O homem havia sumido.

Respirei fundo, tentando entender.

— Foi só um mal súbito, murmurei. Estou bem.

Ela sorriu, aliviada.

— Pensei que tivesse visto um fantasma. Ficou branco feito papel e parou de

respirar.

O motorista parou o ônibus, veio até mim. Confirmei que estava bem. Ele

assentiu, voltou ao volante e seguiu viagem.

A boa senhora apertou minha mão, pediu que respirasse fundo. Obedeci.

Os outros passageiros me olhavam em silêncio. Fiz sinal de que estava tudo certo,

levantando a mão.

E então vi.

Lá no último banco.

Ele também levantava a mão, olhando direto pra mim.

Era ele.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

4ª Sexta-feira - Uivos familiar



Uivos na família

 

Quando subia a ladeira que levava à minha rua naquela tarde, mal sabia eu que iniciava um encontro antigo, como se o destino já houvesse traçado aquele caminho sombrio.

Todos os dias, ao descer do ônibus na entrada do bairro, encontrava o seu Zé. Subíamos o morro juntos, sempre envoltos por uma névoa de rotina. Naquela tarde, contudo, algo pesava no ar. O seu Zé parecia preocupado, mas sua boca se fechava em silêncios pesados.

Eu não sabia muito sobre ele, apenas o nome que o eco do bairro lhe dava: “seu Zé”. Caminhávamos lado a lado, trocando palavras ocas, pequenas moedas de conversas sem valor. Mas naquela tarde, decidi parar no meio da subida para entrar no bar do Chiquinho. Seu Zé seguiu sozinho pela rua tortuosa, a figura se desmanchando na luz fraca do entardecer.

 

— Ô seu Dimiro, veio tomar uma com a gente? — A voz rouca de Dólar, um jovem do bairro, quebrou o silêncio.

— Que nada, só vim pegar uma encomenda da patroa com o Chiquinho.

 

Os rostos ao meu redor se fecharam novamente, as conversas se afogando em murmúrios. Falavam do sumiço de mais duas galinhas do seu Barba. Quando perguntei “como assim, mais duas?”, os relatos escorreram, viscosos, pela sala. Histórias de desaparecimentos, da cabra de seu Xico, do gato do seu Leôncio, do viveiro de codornas do Jacinto, devastado. Uma criatura faminta, diziam. Grande. Perigosa. Silenciosa. Os cães não ousavam latir, apenas uivavam em harmonia mórbida com algum som grave e ancestral, que eu nunca ouvi.

O bar estava lotado, mas o ambiente parecia mais vazio a cada palavra dita. Uma sombra sem forma rastejava entre nós, alimentando-se do medo. Como era novo no bairro, ri baixinho e brinquei:

 

— Vocês se assustam muito fácil. Deve ser só um vira-lata bem grande, cheio de pulgas.

 

Saí do bar, o sorriso ainda pregado no rosto e, vi que já escurecia. Mais à frente, seu Zé estava parado, a silhueta imóvel. Fumava um cigarro de palha. O facho da brasa parecia um olho vermelho na penumbra. Ele apagou o cigarro na unha do dedão esquerdo e, sem uma palavra, caminhou ao meu lado.

Disse que o filho havia chegado de Minas Gerais fazia um mês. Estava morando com ele, mas passava os dias dormindo. Não trabalhava, não falava. Apenas dormia. Pela descrição, imaginei tê-lo visto no bar, um vulto no canto mais escuro.

Conversei algo sem importância, me despedi e segui para casa. Estava exausto. Tomei banho, jantei e me enfiei na cama cedo com meu livro sagrado. O sono me envolveu como um manto pesado.

Acordei no meio da madrugada com o latido do Pé de Pano, meu cachorro mestiço. Ele estava no fundo do quintal, e logo correu para a frente da casa, onde o silêncio o devorou. Acordei de vez ao ouvir outro barulho, um arranhar de garras na madeira. Se Pé de Pano estava na frente... quem estava no fundo?

Levantei-me devagar, o medo me guiando em passos leves. Fui até o último cômodo, onde a pequena janela dava para o quintal. Sem acender a luz, encostei o rosto no vidro. Ouvi uma respiração ofegante, úmida, carregada de um cheiro ácido, como o de um animal molhado. O terror me paralisou. Espiei por uma fresta e o que vi me roubou o fôlego: um olho enorme, amarelo e brilhante, cravado em mim.

 

— Tenho pulgas? — A voz era um sussurro gélido, uma garra arranhando meu crânio.

 

Meu grito rasgou a madrugada. A sombra do outro lado correu e pulou o muro com uma agilidade bestial. Me arrastei de volta para a cama, me escondendo sob os lençóis. O sono não voltou, apenas o medo, sussurrando no meu ouvido.

Pela manhã, arrastei-me para fora de casa. Havia um grupo na rua, todos em volta da carcaça destroçada do bezerro do Gil. A rua estava manchada de sangue. Falavam do bicho, do monstro. Organizaram uma caça.

Segui meu caminho e, mais adiante, vi o seu Zé descendo o morro. Ao seu lado, o filho, cabisbaixo, se apressava. Iam embora, voltando para Minas Gerais. Caminhamos em silêncio até a rodovia. Quando o ônibus chegou, o rapaz subiu sem olhar para trás.

Mal o veículo se moveu, uma das janelas se abriu. Olhei por instinto. O mesmo olhar amarelo e doentio me encarava. A voz chegou até mim, arrastada pelo vento gelado da manhã:

 

— O senhor não gosta de pulgas?

 

As palavras se enrolaram no meu pescoço como um laço. E eu soube que o mal jamais nos abandona. Apenas muda de pele.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

3ª Sexta-feira - Escovando os dentes

 


Escovando os dentes

 

Tinha a mania de ficar até tarde no computador nas sextas-feiras, jogando, vendo vídeos ou ouvindo podcasts de mistérios casuais. Achava tudo muito legal porque não trabalhava nos sábados, então estava de boa.

A primeira vez que percebi algo estranho foi numa dessas noites, quando o celular apagou de repente, mergulhando o quarto numa escuridão sufocante. A tela começou a piscar como se estivesse tentando comunicar algo em código Morse. E então, voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido. Mas a sensação de que algo estava errado já tinha se instalado.

Logo em seguida, senti um vento frio na nuca. Um sopro gelado e úmido, carregando um cheiro estranho, como de algo mofado, antigo. Levantei-me devagar e acendi a luz. Tudo parecia no lugar, o quarto fechado, janelas trancadas. Talvez fosse só cansaço.

Na semana seguinte, as coisas começaram a cair sozinhas. No começo, achei que era culpa minha. Eu tinha o hábito de jogar as roupas de qualquer jeito no cabideiro, então encontrar minha bermuda no chão parecia normal. Só que ela estava do outro lado do quarto. E mesmo assim, insisti em acreditar que eu mesmo a tinha arremessado sem querer.

Na noite seguinte, tomei o cuidado de dobrar a bermuda e guardá-la direitinho no guarda-roupa. Só que acordei com ela aos meus pés, na cama. O quarto trancado, ninguém mais ali. Um arrepio percorreu minha espinha.

Depois do trabalho, decidi registrar tudo isso. Quem sabe depois eu postaria, ou talvez fosse só para organizar os pensamentos. Sentei na cadeira, deixei a luz acesa e comecei a digitar. Logo nas primeiras linhas, senti uma presença. Era como se alguém estivesse inclinado sobre o meu ombro, lendo cada palavra escrita. Parei, olhei ao redor. Tudo parecia normal. Ou quase.

A sensação de que um vulto havia passado pela minha visão periférica e entrado no banheiro me incomodou. Me convenci de que era impossível, de que eu estava apenas sugestionado. Mas a cada pausa, aquele incômodo voltava. A sombra parecia sempre ali, à espreita, no canto do olho.

Continuei escrevendo até que uma frase no texto me chamou atenção: “Já é tarde, vá dormir.” Eu não lembrava de ter digitado aquilo. Li e reli, a frase parecia vibrar na tela. Deletei rapidamente. O relógio marcava quase meia-noite. Talvez fosse mesmo hora de descansar.

Decidi largar o texto para o dia seguinte. Troquei de roupa, apaguei a luz e me deitei. Só então percebi que não havia escovado os dentes. A luz do carregador do celular lançava um brilho fraco, então caminhei no escuro até o banheiro.

Acendi a luz do pequeno armário e me encarei no espelho. O rosto pálido, olhos fundos. Abri a porta do armário, escondendo o espelho, e peguei a escova de dentes. Quando fechei a porta, algo estava errado. O reflexo parecia... deslocado. Como se a sombra atrás de mim não fosse minha.

Virei rapidamente. Nada. O coração disparado. Acendi a luz principal do banheiro, enchendo o espaço de claridade. Coloquei a cabeça para fora e observei o quarto. Silêncio. Tudo no lugar.

Escovei os dentes e voltei para a cama. Assim que apaguei a luz, o celular brilhou novamente. Uma mensagem. O sono deu lugar ao medo. Abri a notificação.

“Já que escovou os dentes, boa noite.”

A mão tremia. A mensagem não tinha remetente. O quarto estava escuro. E eu não estava mais sozinho.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

5ª Sexta-feira - O bambuzal da rua Maia

 


O bambuzal da rua Maia

 

Nala, um motociclista sempre em busca de oportunidades para melhorar sua situação financeira, ouvia frequentemente histórias sobre o bambuzal na esquina da Rua Maia. Era um bambuzal volumoso, com centenas de bambus gigantes, curvados e imponentes. Alguns moradores do bairro diziam que um antigo residente havia escondido uma fortuna entre os bambus, temendo ser roubado, mas morreu antes de revelar o local exato. Em noites específicas, afirmavam ver a figura espectral do homem vigiando seu tesouro, vagando por entre os bambus. Relatavam ainda que aqueles que tentaram encontrar o dinheiro durante o dia nunca tiveram sucesso e, pior, muitos acabaram mortos ou gravemente feridos. Os sobreviventes afirmavam ter visto o velho vigilante do bambuzal rindo. Risadas essas que os atuais moradores também juram ouvir em certas noites.

Para Nala, tudo não passava de uma lenda urbana. Determinou-se a provar que o tesouro era real e que poderia encontrá-lo. Sem contar a ninguém, começou a passar todas as noites pelo bambuzal, esperando ver o tal vigilante.

Nas primeiras noites, tudo parecia normal. A rua silenciosa, o vento sussurrando entre os bambus que, como que dançando, mexiam-se de um lado a outro, mas nada de anormal. No entanto, em uma noite sem lua, enquanto estacionava sua moto em frente ao bambuzal, Nala sentiu um calafrio percorrer sua espinha. O ar parecia mais denso, e uma névoa fina começava a se formar ao redor.

De repente, entre os bambus, uma figura começou a se materializar. Era um homem de aparência envelhecida, roupas gastas e olhos que brilhavam com uma intensidade sobrenatural. Nala engoliu em seco, mas sua determinação falou mais alto.

 

— Você é quem está guardando o tesouro, velho? — perguntou, tentando manter a voz firme.

 

A figura não respondeu com palavras. Em vez disso, estendeu a mão ossuda, apontando para Nala enquanto caminhava em sua direção. Uma dor aguda atravessou o peito de Nala e, mesmo antes de o espectro alcançá-lo, ele caiu de joelhos, ofegante e sem conseguir respirar.

Visões começaram a inundar sua mente: pessoas sendo arrastadas para dentro do bambuzal, gritos de agonia, olhos cheios de terror. Cada imagem era mais vívida e aterrorizante que a anterior. Nala tentou se levantar, mas suas forças o abandonaram.

A última coisa que viu antes de perder a consciência foi a figura se aproximando, com um sorriso macabro nos lábios.

Na manhã seguinte, moradores encontraram a moto de Nala abandonada em frente ao bambuzal. Não havia sinal dele, apenas marcas profundas no chão, como se alguém tivesse sido arrastado para dentro da vegetação densa.

Aguardaram que Nala retornasse para pegar sua moto, mas ele nunca apareceu.

O único relato sobre esse episódio foi de um vizinho, morador a 100 metros do bambuzal, que acabara de acordar para ir ao trabalho de vigilante noturno e escutou o barulho dos bambus batendo, como se houvesse lá fora uma ventania muito forte. O ruído era intenso, como se os bambus estivessem se contorcendo, mas nem isso foi suficiente para impedi-lo de ouvir um grito de "Não me leve" e a palavra "socorro", que foi sumindo ao fundo, encoberta por risadas.

Assustado, abriu a porta e saiu à varanda, vendo tudo calmo e silencioso.

A lenda do bambuzal na Rua Maia ganhou mais um capítulo sombrio, e ninguém mais ousou desafiar o vigilante do tesouro.

sexta-feira, 28 de março de 2025

2ª Sexta-feira - Carona no Uber



     Carona no Uber

 

Tinha Após uma longa noite ao volante, eu retornava para casa, exausto. Ao fazer a penúltima curva, o cansaço pesava sobre mim. Cruzei o viaduto que atravessa a Rodovia Dutra e adentrei a antiga pista D. Pedro I. Apenas mais uma curva e estaria no meu bairro. A vida de motorista de Uber noturno estava me consumindo, mas o dinheiro era necessário para sobreviver.

Concluí a curva e fui envolvido por uma escuridão absoluta. No para-brisa, minúsculas gotas de uma garoa fina começavam a se acumular.

 

— Não acredito! Outra vez sem energia. — murmurei, frustrado. Chegar em casa cansado, sob uma garoa persistente, e não poder tomar um banho revigorante era desanimador.

 

Reduzi a velocidade, lamentando minha sorte. Logo na entrada, havia uma lombada, e pessoas poderiam estar atravessando a rodovia para pegar o ônibus. No primeiro ponto à direita, avistei um senhor e uma criança sentados no banco. Reconheci o idoso como um vizinho da minha rua. Decidi oferecer-lhes uma carona.

 

— Boa noite! Moramos na mesma rua, e nesta escuridão, não é seguro esperar pelo ônibus. Aceitam uma carona?

 

O homem assentiu silenciosamente e, juntos, eles se aproximaram do carro. A menina, com um capuz cobrindo o rosto, movia-se com dificuldade. Presumi que usava o capuz para se proteger da garoa incessante. O senhor abriu a porta traseira e ajudou a menina a entrar antes de se acomodar no banco do passageiro. Estendi a mão e me apresentei.

Ele disse se chamar Geraldo e mencionou que havia buscado a neta para passar o dia em sua casa. Costumava caminhar pelo acostamento da rodovia, mas, devido à escuridão, optou por esperar por uma carona ou pelo ônibus, o que viesse primeiro.

Olhei pelo retrovisor e vi a menina com a cabeça baixa, observando as mãos no colo.

 

— Fez bem, seu Geraldo. Embora seja perto, esse trecho da rodovia é perigoso, especialmente nesta escuridão.

 

Ele apenas assentiu, sem dizer mais nada, voltando-se para verificar a neta no banco traseiro.

Perguntei há quanto tempo estavam no ponto, já que passava das 22 horas, e ele respondeu que não sabia ao certo. Disse que eu era a terceira carona que tentava conseguir, mas não havia conseguido seguir para casa.

Não compreendi bem o que ele quis dizer, mas comentei que agora chegariam em casa.

Aproximando-me da entrada do bairro, observei:

 

— Com esta escuridão, preciso estar atento para virar à esquerda aqui. Os motoristas à frente podem ver meus faróis, mas, como o carro é preto e as lanternas traseiras são discretas, sempre há o risco de um apressado desatento nos atingir.

 

Virei o rosto para a direita, colocando o braço esquerdo para fora da janela, observando a rodovia para garantir que não havia veículos se aproximando, e então ouvi o senhor Geraldo dizer:

 

— Nós sabemos disso, não é, querida?

Cruzei a rodovia com cautela e sorri, aliviado.

— Pronto, agora é mais tranquilo. Logo estaremos em casa.

 

Sorrindo, virei-me para o lado do passageiro e levei um susto.

 

— Seu Geraldo? Onde está o senhor?

 

O banco do passageiro estava vazio.

Bati com a mão no assento e forcei a porta; ela estava trancada. Lembrei-me da menina no banco de trás e, ao me virar, vi os dois sentados lado a lado. Nesse momento, um carro passou na direção oposta, e a luz dos faróis iluminou-os claramente. A menina tinha o rosto desfigurado, a blusa encharcada de sangue, e o velho apresentava metade do rosto esmagado. Frei o carro abruptamente, temendo colidir com algo, e, nesse movimento brusco, acionei a buzina. Olhei novamente para trás, mas o banco estava vazio.

Meu coração disparou. Encostei o carro próximo ao mercadinho da lagoa e saí, ofegante. Fiquei alguns minutos observando o veículo da calçada, tentando enxergar algo na escuridão. Lembrei-me da lanterna no porta-malas e, lentamente, aproximei-me novamente do carro. Abri o compartimento e peguei a lanterna. Primeiro, iluminei o banco do passageiro, que continuava vazio; então, lentamente, direcionei o feixe de luz para o banco traseiro. Também vazio.

Abri a porta traseira com cautela e examinei o interior: nada. Quando estava prestes a fechar a porta, meu celular tocou estridentemente no painel. O susto fez com que eu deixasse a lanterna cair sob o carro.

Peguei o celular, evitando olhar para o banco traseiro, e atendi, ainda do lado de fora.

— Querido, onde você está? Está demorando. O bairro está às escuras. Tenha cuidado.

 

Gaguejando, respondi:

 

— Estou chegando. Perto do mercadinho da lagoa.

 

Desliguei, entrei no carro e dirigi apressadamente.

Meus olhos evitavam o retrovisor, temendo o que poderia ver.

Minha garagem possuía luz de emergência, instalada após o último apagão. Abri o portão, estacionei e saí rapidamente, entrando em casa.

Minha esposa me recebeu com uma lanterna, abraçando-me:

 

— Graças a Deus você chegou bem. Houve um acidente horrível na entrada do bairro. Fiquei preocupada.

— Acidente?

— Sim, um morador da nossa rua foi atropelado com sua netinha quando a trazia para casa para passar o final de semana com a vó. Pobre senhora, ficou esperando no protão e eles nunca chegaram.

— Não chegaram mesmo. — disse eu enquanto minha esposa chorava sentidamente ao meu ombro.